“Atenção, senhores, o Big Brother é super simples, vocês sabem disso. Vocês lutaram pra caramba para entrar. Alguns de vocês, dois, três anos. Não é uma brincadeira, é um jogo para valer. Se alguém quiser sair, pode sair. Tem 100 mil pessoas querendo entrar no lugar de vocês. Se a gente quiser botar alguém no final, a gente bota na casa e os caras vão entrar com muito mais vantagem. Quem sai é desistente, é perdedor. Quem é eliminado lutou até o final com louvor, lutou com a sua alma. Quem perde é quem desiste, é fraco. Então, é o seguinte: o jogo continua. Quem quiser sair, é super simples, vocês viram como é fácil: é só botar a malinha lá, entrar no confessionário e 'pum'! Sumiu da nossa vida, sumiu da nossa história, morreu pra gente! E, se vocês quiserem, morreu para vocês também. Eu acho que vocês devem acabar de enterrar essa pessoa que se 'auto-eliminou', que se suicidou, que foi embora para o espaço. Continuem o jogo entre vocês, bola pra frente. Quem quiser sair, nenhum problema: a gente tem um bilhão de pessoas para entrar, o que vai dificultar a vida de vocês. Pensem como isso vai jogar. Acabou! Eu vou desligar agora, apaguem da memória, eu não quero ouvir ninguém falar o que eu falei. Bom jogo! Quero ver quem vai chegar à final. Até logo”.
Com essas palavras, proferidas com tom ameaçador e aparente irritação, o diretor de televisão da Rede Globo, Boninho, causou espanto nos participantes do mais famoso reality show no Brasil, o Big Brother, na edição de 2015. A bronca foi dada logo após a desistência da cirurgiã-dentista Tamires Peloso, que disse, à época, estar feliz com a decisão de abandonar a casa: “Não vale tudo por R$1,5 milhão”.
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Menos surpresos ficaram os milhões de espectadores que, há décadas, participam do jogo votando com entusiasmo no próximo eliminado e divulgando a programação, com virulentos ataques e derramados louvores ao seleto elenco. Essas pessoas estão acostumadas a ver coisa pior do que um esporro: provas de resistência física de 43 horas criticadas por profissionais de saúde, torturas por privação de sentido e confinamento apertado, como no famoso Quarto Branco, punições com perda de “estalecas”, deixando a casa horas ou dias sem ter o que comer, exposição da intimidade do brother ou sister, do edredom ao banheiro, intermináveis sessões de humilhação, como no empresarial “O Aprendiz”, ter que comer vermes vivos, como no redivivo “No Limite”, e a punição das punições, denominador comum dos realities: a destruição da reputação, que está na moda chamar de “cancelamento”.
Confinada por uma pandemia que não tem data para acabar e privada de ir ao carnaval, ao bar, ao estádio, à praça, à manifestação, a população comparece em peso, aplaude e engorda a audiência desse culto ao sofrimento e à competição. Uma competição pela sobrevivência, em que não há lugar para todos e a eliminação é o princípio mais importante.
Os competidores são punidos pelos seus pares e pelo público. As regras são definidas pelo proprietário privado do programa, que pode alterá-las a qualquer momento, inesperadamente. E, acima de tudo, o compromisso de produzir o tempo inteiro para a audiência, a fim de não se tornar "planta", isto é, uma figura inexpressiva e eliminável. Será que o BBB é o mundo dos sonhos do neoliberalismo?
Para refletir sobre o assunto, o Brasil de Fato MG conversou com a socióloga Silvia Rodrigues Viana, professora da Fundação Getúlio Vargas e autora, pela Boitempo, do livro Rituais de Sofrimento, desdobramento de uma tese defendida na USP há cerca de uma década, na qual ela analisa o papel dos reality shows e também de programas e filmes de Hollywood na indústria cultural contemporânea.
Brasil de Fato MG - Você chamou os reality shows de rituais de sofrimento. Por quê?
Silvia Viana - Eu uso o termo “rituais” por conta de um debate a respeito da ideologia. No sentido de Marx, a ideologia está ligada à questão da consciência, à cognição, ao que sabemos ou deixamos de saber. Ele entendia a ideologia como falsa consciência, uma compreensão falsa da realidade, que é representada de maneira distorcida, equivocada.
Eu tento entender os reality shows numa concepção do filósofo Slavoj Zizek, que pensa a ideologia não a partir do que sabemos, mas do que fazemos. Portanto, a ideologia seria uma espécie de mentira posta no nosso próprio fazer. Zizek parte, então, de outro ponto da teoria de Marx, o fetiche da mercadoria. Por mais que saibamos que aquela mercadoria é trabalho acumulado, agimos como se ela tivesse vida própria. Zizek chama de “fantasia ideológica” o erro que nós reproduzimos na nossa prática, independente do que nós sabemos ou deixamos de saber.
Redes sociais são a nova indústria cultural e não tem nada de democracia ali
Se conversarmos com a maioria das pessoas que assistem os realities, elas vão dizer que aquilo é uma porcaria. No entanto, continuam assistindo. Isso é uma fantasia ideológica. Então, eu faço a seguinte pergunta: qual é a fantasia que organiza o nosso mundo no capitalismo contemporâneo? É um mundo organizado pela ideia do sofrimento, um mundo catastrófico, que tem no sofrimento o seu discurso e seu motor. O que eu descobri é que os reality shows reproduzem essa fantasia social, que se desdobra do outro lado da tela, do lado de cá, no mundo do trabalho.
Essa afirmação contraria a crítica moralista de quem diz: “aquele pessoal é um bando de desocupados, que estão ali à toa, reclamando da vida, com piscina, uma casa maravilhosa e podendo ganhar mais de R$ 1 milhão”.
Basta você assistir 10 minutos para ver que não é nada disso. Por que aquelas pessoas não estão coçando o saco? Por que pessoas tão bonitas não estão se pegando, curtindo a piscina? Porque elas passam o tempo inteiro batalhando, fazendo intriga e participando daquelas provas bárbaras. O entretenimento é o trabalho delas. Por isso, elas não se dão ao direito de fazerem o óbvio, que é ficar “de boas”.
Elas estão trabalhando para não serem eliminadas. E elas precisam trabalhar arduamente, aparecer, jogar para tentar se eliminar mutuamente e sobreviver, no jogo cujo princípio não é a vitória, mas a eliminação.
E o que é a nossa fantasia social no mundo de acumulação flexível do capitalismo contemporâneo? A ideia de que a revolução tecnológica expulsa força de trabalho, não há trabalho para todos, as próprias empresas vão atuando nessa rotatividade e as pessoas precisam, a todo momento, se virar, sambar ou, nos termos gerenciais, “se reciclar” para não serem eliminadas. Isto inclui as empresas: “a empresa que não inova está fadada a desaparecer”. O mesmo ocorre com a força de trabalho: “você precisa o tempo inteiro investir em si mesmo e batalhar para não ser eliminado”.
Política supõe abrir horizontes, fazer alguma coisa para que as coisas que não existem passem a existir
É algo muito diferente do capitalismo fordista, em que o seu trabalho se torna caminho para algum tipo de ascensão social, o reino do Estado de bem-estar social. A sociedade prometia que, se você vendesse sua força de trabalho, poderia conquistar o conforto, o consumo. Agora, temos uma ideologia negativa, que é pura ameaça e diz: “se você parar de se debater, de correr de um lado para o outro, de prometer mundos e fundos, você não sobrevive”. A nossa ideologia não promete mais nada, ela apenas ameaça.
Não surpreende que qualquer pessoa que já trabalhou por um tempo em uma grande empresa tenha participado de longos e enfadonhos cursos de estratégias motivacionais, organização do trabalho e outros, nos quais algum reality show é usado como exemplar. Já vi o BBB ser citado para ilustrar a conduta na empresa.
Existe um reality show só para isso: “O Aprendiz”. São representações das nossas formas de vida. Nesse tipo de palestra motivacional, também temos a fantasia ideológica daquilo que fazemos, independentemente de acreditarmos ou não. Você faz, mesmo que não acredite naquilo, pois é um rito. Palestra motivacional é isso. Qualquer pessoa consegue perceber que aquilo é uma palhaçada, é algo que você faz porque tem que fazer. Mas, quando você faz, você acredita e a crença é exteriorizada.
Também é importante pensar que as palestras motivacionais são humilhantes, degradantes, impõem certos jogos. Até mesmo aquelas que não parecem degradantes nos obrigam a cumprir um papel, assim como as pessoas que olham para o Big Brother e dizem: “eles só estão atuando”. Ora, como se também não estivéssemos atuando no mundo do trabalho!
Por que estamos cada vez mais aprisionados ao trabalho, enlouquecendo, sendo assediados e assediando?
Existe a ideia de que o ex-participante se torna um pária, uma pessoa mal vista. A maioria não prospera, não fica rico, não continua famosa por muito tempo. E, aí, torna-se um estigma ser ex-BBB. Porém, com o tempo, a Globo descobriu como prolongar o BBB, no sentido de que os participantes aumentam demais o número de seguidores nas redes sociais, os mais aptos são incorporados pela própria emissora, participam cada vez mais de campanhas de divulgação de produtos. Há vencedores do BBB 21 com mais seguidores nas redes que Lula e Bolsonaro juntos. Isso pode ser usado pela Globo para promover seu próprio programa político?
Olha, eu não tenho tanta preocupação com a Globo, visto que ela, assim como toda a direita tradicional, tomou uma rasteira do bolsonarismo. Além disso, a Globo sempre teve esse poder de formar estrelas que tinham, sim, influência. Em determinados momentos, inclusive, a Globo formou estrelas de esquerda, muitos artistas que são de esquerda foram lançados por ela.
É preciso prestar atenção para que, aos poucos, as redes são a nova indústria cultural. Não tem nada de democracia ali, de participação. São grandes empresas que têm outra lógica, cuja origem é a mesma do Big Brother: participação e, mais do que isso, quantificação para a concorrência (likes, corações) de uma falsa mercadoria, assim como os votos do BBB. E isso tem consequências práticas, com pessoas que conseguem ou não conseguem emprego, inclusive o emprego da fama, que, agora, está sendo forjado pelas redes, e não pela Globo. São os YouTubers que vão ser entrevistados pela Globo, não o contrário.
Um ponto muito interessante, que eu descobri com a história da Karol Conká, é o tal do “cancelamento”. O cancelamento também é um paredão, só que um paredão das pessoas que naturalizaram essa fantasia da necessidade da seleção que aniquila o outro, que expulsa o outro, o elimina. E aquilo torna-se um jogo de opiniões a respeito de condutas, personalidades.
Veja como a perversão vai se tornando mais complexa e profunda: as pessoas assumem um papel que, antes, exigia a mediação do aparato televisivo, com o Boninho fazendo provas. Agora, você tem essa mesma lógica levada a cabo pelo público, que trabalha gratuitamente para Google, YouTube, Instagram, etc. Quem é o redator, o produtor de vídeo, o ator, o jornalista, o articulista, aquele que vai fazer o conteúdo? São os próprios consumidores, que trabalham de graça para as plataformas.
O princípio dos realities, das redes e do trabalho é o mesmo: eliminem uns aos outros
Então, a coisa vai ficando mais complexa. Porém, o princípio se mantém: de um mercado concorrencial em que não há lugar para todos e, portanto, as pessoas têm que concorrer para eliminar umas às outras. Aí, eu retorno à pergunta: por que no BBB, aquele mundo maravilhoso, que tem piscina e gente bonita, as pessoas precisam trabalhar?
Vamos transpor essa pergunta para o nosso mundo: por que as pessoas agem desse jeito numa empresa, na internet, no trabalho precário do Uber, do entregador de comida, da saúde, dos professores, a fim de sobreviverem, como se estivessem sempre diante de um paredão, mesmo sabendo que nunca fomos tão ricos como agora? Veja o patamar em que se encontram as forças produtivas, a riqueza produzida no mundo.
Por que, então, estamos cada vez mais aprisionados ao trabalho, enlouquecendo, sendo assediados e assediando? O cancelamento é um assédio. As pessoas fazem no trabalho coisas muito mais pesadas do que a Karol Conká fez no BBB. Aquilo é um fenômeno estrutural do mundo do trabalho.
A despeito do que foi dito, muitas pessoas de esquerda, que por muito tempo criticaram a Globo, comemoram o fato de que, agora, metade do elenco é composta por negros, havia participantes LGBT, as mulheres colocam o seu discurso de empoderamento e até militantes de esquerda (ao menos dois) já venceram o BBB. Como você analisa esse fenômeno?
Bem, quem participa do BBB são pessoas normais, tem gente bacana ali. Mas vamos para onde o coração dói: a esquerda está perdida, desde o âmbito institucional até esses movimentos que eu vou chamar de “identitários”, a fim de diferenciá-los de outros movimentos, feministas, LGBT, anti-racistas, de várias concepções. Os identitários são os que foram largamente incorporados pelo capital, seja porque aparecem mais nas mídias, nas empresas, seja para vender produtos. São os movimentos que se tornaram hegemônicos nos discursos e práticas. Será que eles são, de fato, progressistas?
Em um programa cuja lógica é econômica, concorrencial, que individualiza (só um pode ganhar), você investe o seu tempo e sua militância torcendo para que essas pessoas briguem umas com as outras, para que uma se sobreponha às outras, para que as outras sejam eliminadas! Isso pode ser qualquer coisa, menos política.
Não existe política de indivíduo, pois política necessariamente implica o coletivo, agir em nome de muitos ou com muitos. Além disso, política supõe abrir horizontes, fazer alguma coisa para que as coisas que não existem passem a existir, fazer do presente outra coisa diferente do que ele é. Quando você torce para uma pessoa ferrar as outras, você está trancafiando o futuro, reproduzindo o mundo tal como ele é. O mundo é assim: concorrência, uma luta para não ser eliminado e punir as pessoas.
Não existe política de indivíduo, pois política necessariamente implica o coletivo
O que acontece quando você começa a torcer por X ou Y? Você simplesmente oferece um novo critério, que pode ser qualquer um. O BBB já teve inúmeros critérios de seleção. E a graça é que a pessoa que está na roda nunca sabe qual é o novo critério. Assim, o capital consegue deixar a incógnita de como vai ser a eliminação e fazer com que todos se desdobrem mais e mais. Isso não é política. Se nós queremos o fim do racismo, do machismo, não é reproduzindo as coisas tais como são que conseguiremos.
Então, eu penso que esses movimentos estão equivocados e isso apareceu na figura da Karol Conká, que só fez aquilo que o mundo exigiu dela, ou seja, que ela se empodere. O termo “empoderamento” vem do mundo das empresas, que tratam como se fosse uma vitória política o que é uma simples vitória individual. Se essas pessoas não perceberem que tipo de lógica elas estão alimentando, podem se chamar de grupo de mercado, pode-se admitir que elas estão precisando de dinheiro, eu não sou moralista para condenar isso. Mas não vamos fingir que estão fazendo política.
Eu também acho que as pessoas que discordam desses discursos têm que começar a se colocar. A minha crítica não é endereçada a todos os movimentos, mas aos que foram assimilados a esse capitalismo contemporâneo. Não digam que são progressistas, de esquerda, se estão fazendo apenas disputa econômica ou debates puramente morais. Nós, esquerda, precisamos de todos e todas. Mais do que nunca, não dá para continuar nos digerindo uns aos outros.
Edição: Elis Almeida