Minas Gerais

Coluna

A vida mentirosa dos adultos

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"O que a assustava era a desfaçatez com que seus pais a trataram esse tempo todo. Ela insistia em não acreditar nessa barbárie" - Vector Juice / Freepik
O pai, que parecia um lorde inglês, foi preso por assédio sexual

Pâmela era a mais nova das quatro irmãs. Também a mais generosa, bonita, intelectual e a mais escura.  Suas irmãs eram bem branquinhas e loiras do olho azul. Ela tinha cabelos longos, lisos e negros.  Seu apelido era Capitu. Seus olhos também eram oblíquos.

Seus pais eram professores e intelectuais da cidade em que moravam.

Ela amava seu pai. Era um homem gentil, modos finos e um corpo delgado. Suas roupas caras ajudavam mais ainda a realçar sua beleza.  Galanteador e amoroso com todas as filhas. Bem-humorado. Estudava e escrevia o dia todo. Diretor da escola mais famosa e cara da região. Durante a infância de Pâmela, ele a incentivava a ler, nadar, jogar bola na rua e cuidar do seu lindo cabelo negro e escorrido até a cintura.

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Um dia, pela manhã, seus pais falavam baixinho na cozinha de casa. Era uma cozinha ampla com um fogão à lenha, logo na saída para a piscina. Quase ninguém curtia a piscina na casa. Era mais um enfeite. Seus pais eram como lordes ingleses de tão educados, falava a vizinhança da família.

Mas naquele dia tudo mudou. Os dois achavam que todas as quatro filhas estavam dormindo e começaram a conversar. Cochichavam igual garoa paulistana num dia de frio.

Foi assim que o mundo de Pâmela caiu por completo. Aquele homem gentil e educado era pura farsa. Era um crápula. Um grande ator que enganava todo mundo.

Ele começou a falar para a sua esposa:

-  Você não acha que essas nossas filhas são horrorosas demais e burras?

A mãe ficou em silêncio. Balançou a cabeça concordando com o marido.

- Gastamos horrores com elas e nada. Só dão despesas.

- A Pâmela, com esse sangue negro, não vai dar boa coisa na vida. Ela está ficando muito parecida com a mãe verdadeira. Lembra que ela é uma assassina? Seus olhos são de Capitu misturada com o maníaco do parque. Tenho muito medo dela.

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Pâmela não acreditava na conversa que acabara de ouvir. Ela decidiu que iria embora ao amanhecer.

O que a assustava era a desfaçatez com que seus pais a trataram esse tempo todo. Ela insistia em não acreditar nessa barbárie.

Logo pela manhã, uma notícia bomba na casa: a mãe morrera de infarto às cinco da manhã. Seu plano de fugir tinha ido para o espaço. No enterro, não conseguiu derramar uma lágrima sequer. Ficou calada o tempo todo com um olhar fixo no caixão. Não trocou uma palavra com ninguém. Seu pai reparou que ela não chorou nem uma hora.

Mas o pior estava por vir. Uma semana depois da morte da mãe, o pai foi preso por assédio sexual. Foi acusado por uma faxineira na escola. Pâmela não cabia dentro de si. Sua vida era um castelo de areia?, perguntava para Santa Bárbara, da qual era devota.

Foi uma empreitada árdua até sair desse pesadelo. Hoje ela não acredita no mundo dos adultos. Acha tudo um grande teatro. Lembra do assassinato de Desdêmona, como foi injusto. Se sente traída, aviltada.

Em uma tarde qualquer, ninguém sabe o que aconteceu. Só as paredes sabem o segredo de Pâmela e o vento lá fora.

 

Rubinho Giaquinto é covereador da Coletiva em Belo Horizonte
 

Edição: Larissa Costa