Evangélicos de hoje são bem diferentes dos que chegaram ao Brasil no século 19
Por Jorge Carvalho do Nascimento*
Às vésperas de celebrar, em 7 de setembro de 2022, o bicentenário da sua independência política, o Brasil vê sentado na cadeira de ministro da Educação um pastor da Igreja Presbiteriana em Santos, Milton Ribeiro.
Não há qualquer problema no fato de um pastor evangélico ocupar o cargo de ministro da Educação. Pouco importa que seja um pastor presbiteriano. Poderia ser um padre, um rabino, um líder muçulmano, um pai de santo ou um outro líder de alguma religião de origem africana, um líder espírita. Nada disso interessa, desde que o governo do qual ele participa respeite o preceito constitucional que diz ser laico o Estado.
Será que o atual governo do Brasil efetivamente toma a sério o fundamento da laicidade?
Parecem frágeis as convicções democráticas e o respeito aos preceitos constitucionais por parte do chefe do Poder Executivo, que comparece a manifestações públicas de seguidores seus nas quais há faixas e cartazes pedindo a volta da ditadura militar, com ele mesmo no poder.
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Como se fora pouco, tais atos pregam também uma nova edição do Ato Institucional número 5, de 1968, além de pugnar pelo fechamento do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. De tais manifestações se distanciaria um presidente da República que possuísse arraigadas convicções democráticas, o que não tem acontecido no Brasil atualmente.
O fato é que Bolsonaro se elegeu em 2018 com amplo apoio dos evangélicos, esboçando teses ultraconservadoras e muitas vezes antidemocráticas. E tais teses receberam o amplo apoio de lideranças evangélicas. O presidente chega a afirmar, como um dos seus critérios para nomear o ocupante da próxima vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal, que ele necessita ser “terrivelmente evangélico”.
Estamos diante de evangélicos bem diferentes daquilo que eles foram quando começaram a chegar ao Brasil no início do século 19, justamente no momento em que o país estava se tornando independente.
A Constituição do Império fazia do catolicismo a religião oficial de Estado. Foi intensa a luta dos evangélicos no Brasil, que tinha o catolicismo como religião de Estado, para afirmar as suas convicções de fé. Em tal processo, funcionando como associações voluntárias, as Igrejas protestantes encontraram na difusão de escolas, hospitais e práticas de leitura em todo o Brasil eficazes instrumentos de legitimação junto às populações mais pobres e também a alguns setores da elite letrada.
Quando a independência do Brasil completou 100 anos, em setembro de 1922, o reverendo H. C. Tucker, Secretário da Agência Brasileira da Sociedade Bíblica Americana, publicou sob o formato de opúsculo o trabalho A Bíblia no Brasil durante o século da independência nacional.
O texto relata o esforço feito pelos evangélicos norte-americanos em território brasileiro para distribuir volumes da Bíblia e do Novo Testamento traduzidos em Língua Portuguesa, ensinando concomitantemente a leitura e a escrita a diversos grupos de brasileiros.
O discurso, do ponto de vista ideológico e das posições políticas à época defendidas, é bem distinto das posições que assumem atualmente os evangélicos comensais do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.
A defesa de valores democráticos e de garantia das liberdades individuais foi marca distintiva dos evangélicos no Brasil oitocentista e da primeira metade do século 20. Era assim que eles faziam frente à resistência de atuação no país, organizada contra os protestantes pelas autoridades da Igreja Católica.
A disposição que alguns líderes protestantes contemporâneos, como o ministro da Educação Milton Ribeiro, manifestam em controlar a liberdade de expressão de professores, inclusive o conteúdo de provas e exames como o Enem, mantém paralelismo com o comportamento de líderes católicos do século 19, que se posicionavam contrários à liberdade de ensinar, entendendo que esta beneficiava os protestantes.
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Em carta que publicou em uma das edições do ano de 1873 da Revista Mensal da Instrução Pública, o padre jesuíta Clemente Negri afirma: “a liberdade de ensinar, dada a todos, é essencialmente imoral, e por conseguinte ilícita, visto que franqueará o ensino ao incrédulo, ao racionalista, ao protestante etc.”.
E agora que o Estado é constitucionalmente laico, é importante anotar que foi sob o Estado constitucionalmente católico que as escolas protestantes foram toleradas pelo Imperador Pedro II e se expandiram por todo o território brasileiro. O período do Segundo Império foi, assim, bastante fértil para o protestantismo no Brasil.
Naquele período, muitos intelectuais brasileiros questionavam com alguma insistência o caráter hegemônico do catolicismo como religião oficial de Estado.
Confirmando o seu caráter “iluminista”, as igrejas protestantes e as sociedades bíblicas americana e inglesa distribuíram muitos volumes da Bíblia, do Novo Testamento e de outros impressos e difundiram as pedagogias norte-americana e alemã entre nós.
Agora, nos aproximamos das celebrações do bicentenário da Independência do Brasil, inquietos com uma renitente interrogação: com quais protestantes a Educação brasileira está convivendo?
*Jorge Carvalho do Nascimento é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor aposentado da Universidade Federal de Sergipe e presidente da Academia Sergipana de Educação.
Edição: Elis Almeida