As “boiadas” marcam esse novo tempo. A declaração profética do ex-antiministro do meio ambiente, Ricardo Sales, continua ecoando nos rincões mais improváveis e influenciando o processo de desregulamentação geral que chega, pouco a pouco, nas cidades do interior do Brasil.
“Passar a boiada” virou sinônimo de dissolver os regramentos protetivos ambientais. E foi o que aconteceu em Carrancas, Sul de Minas Gerais, cidade de importância hídrica e pólo turístico com cascatas, cachoeiras, poços, cânions, lagos e grutas, que serviu de palco para diversas novelas brasileiras devido à sua beleza cenográfica. O paraíso ambiental no Estado de Minas já serviu de cenário para as novelas “Orgulho e Paixão” (2018), “Espelho da Vida” (2018), “Império” (2014), “Amor Eterno Amor” (2012), “Paraíso” (2009), “Alma Gêmea” (2006), “A Favorita” (2008), “América” (2005) e “O Fim do Mundo” (1996).
Contudo, apesar de historicamente ser alvo da convivência predatória dos seres humanos, a região se encontra ainda sobre maiores danos riscos nos últimos anos. Ambientalistas têm denunciado uma série de retrocessos e desregulamentações promovida pela prefeitura na área, colocando em risco todo o ecossistema.
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Entre as controversas medidas do município em descompasso com o meio ambiente em curso, destaca-se a construção do silo na entrada da cidade e da rampa de motocross na Cruz das Almas, localizada em área de recarga natural de uma nascente.
Quanto ao silo, os munícipes alegam que o mesmo se localiza próximo a pontos turísticos importantes, sem estudo de impacto de vizinhança, e que os ruídos emitidos em sua operação constituirão poluição sonora prejudicial à segurança, ao sossego e à saúde dos carranquenses e visitantes da localidade. As pousadas locais têm informado cancelamento de reservas, em vista dos impactos ambientais negativos da futura instalação do silo, em razão das obras de sua implantação.
Já a pista de motocross estava sendo instalada pela Prefeitura Municipal em campo rupestre, de solo arenoso, em terreno que gerará impacto ao sistema hidrográfico local, tendo em vista a instalação em área de recarga natural de uma nascente.
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O ponto que culminou em uma maior denúncia de retrocessos na área decorreu da dissolução, na última sexta-feira, 18, do Conselho Municipal do Meio Ambiente, o CODEMA, que possui funções consultivas, deliberativas, normativas, fiscalizadoras e de assessoramento do poder público municipal nas questões referentes à política ambiental, criado através da lei municipal 1.604, de 16/12/2020.
A dissolução se soma aos esforços da prefeitura em desregulamentar o Plano Diretor da cidade com vistas a abrir as portas para a mineração, que somente na história recente do Estado de Minas Gerais foi causa de gravíssimos desastres ambientais como em Brumadinho e Mariana. Entenda.
Dissolução do Conselho de Meio Ambiente
Em 18 de junho de 2021, o CODEMA — Conselho Municipal do Meio Ambiente, foi destituído pelo decreto municipal 2021/2021, assinado pelo prefeito Hely Andrade Alves (PTB). A prefeitura, em nota pública de esclarecimento, alega descumprimento dos procedimentos legais na escolha das entidades de sociedade civil de composição do CODEMA. As entidades e ambientalistas que compunham o referido conselho informam que o procedimento guardou todas as prescrições legais e que os conselheiros foram nomeados pelo decreto municipal 1.973, de 03/02/2021, devidamente empossados, legalmente constituídos e formalmente habilitados ao exercício das funções.
Segundo as entidades ambientalistas de Carrancas/MG, em cumprimento dos ritos jurídico-administrativos, foi dada ampla divulgação e publicidade à eleição e posse dos seus membros, com a escolha de entidades ambientalistas em assembleia pública e tomada de posse em março de 2021, estando o CODEMA legalmente organizado e os conselheiros em regular exercício de suas competências legais, até a sua destituição, que violou a autonomia que rege os conselhos municipais.
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Apesar da alegação da Prefeitura Municipal, a destituição dos conselheiros se deu após denúncias ambientais formalizadas pelo CODEMA, depois da devida autuação pelo descumprimento da legislação ambiental municipal nos casos do silo e da pista de motocross, que, segundo ambientalistas, desagradaram os interesses do poder público municipal.
Ao exercerem a função na promoção da defesa do meio ambiente e em representatividade dos munícipes quanto às questões ambientais, diante da atuação do CODEMA, a solução do prefeito municipal foi revogar os decretos municipais de nomeação e posse dos membros titulares e suplentes do conselho, alegando “vício formal” e anular todos os atos desde a sua constituição.
Segundo Thiago Magalhães Meireles, da ARPA Rio Grande — Agência Regional de Proteção Ambiental da Bacia do Rio Grande, “a destituição do Conselho se deu justamente após autuação dos conselheiros nos empreendimentos irregulares, em estrito cumprimento das competências legais do CODEMA, pegando todos de surpresa”.
Alteração do plano diretor do município e pressão por mineração
Além da construção do silo na entrada da cidade e da rampa de motocross na Cruz das Almas, discute-se na Câmara de Vereadores de Carrancas/MG o projeto de lei complementar municipal 2/2021, apresentado pelo prefeito municipal Hely Andrade Alves (PTB), que prevê a alteração no Plano Diretor, buscando desregulamentar a vocação ecoturística do município e facilitar os empreendimentos minerários. Segundo entidades ambientalistas, o objetivo do projeto de lei é desregulamentar o art. 56 do Plano Diretor, norma que visa à proteção dos recursos hídricos e serras do município.
O artigo 56 da lei complementar municipal 64, de 04/01/2017, consagrou a vocação ecoturística do município de Carrancas, refutando os empreendimentos minerários que têm se expandido em Minas Gerais e gerado danos ambientais irreversíveis, tais como os desastres em Brumadinho e Mariana.
O Plano Diretor de Carrancas foi aprovado com a participação da sociedade civil e do MPMG, através de atuação conjunta da Coordenadoria Regional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Rio Grande, da Promotoria de Justiça de Itumirim e da 3ª Promotoria de Justiça de Lavras, quando se buscou a conscientização e consolidação normativa para resolver situações de conflitos ambientais, como o parcelamento irregular do solo, a ocupação ilegal de zonas de recarga dos recursos hídricos e a pressão imobiliária, protegendo os interesses das atuais e futuras gerações, na forma insculpida no art. 225 da Constituição Federal.
A destituição dos membros do CODEMA se soma a esse contexto, colocando em risco não apenas os princípios do Estado democrático de direito, mas também a possibilidade do futuro comum, pois diz respeito, principalmente, à desproteção de recursos hídricos e à facilitação de empreendimentos que já foram refutados pela população carranquense.
O projeto de lei 02/2021, em tramitação na Câmara de Vereadores de Carrancas/MG, sinaliza o que está por vir e mostra do que pode ter se tratado a destituição do CODEMA. As entidades ambientalistas sinalizam que os fatos serão formalizados e encaminhados para o Ministério Público local, em busca da tutela ambiental do município de Carrancas, encaminhando cópia da notícia de fato para a Coordenadoria Regional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Bacia do Rio Grande.
Efeito cascata
Carrancas/MG, em efeito “cascata”, reflete, como um espelho d’água, as “boiadas” que têm destruído o Brasil, desregulamentando e esvaziando a participação popular na defesa do meio ambiente, corporificada no CODEMA.
Os conselhos municipais são previstos desde a Carta Cidadã de 1988 e a destituição de seus membros, quando destituída de robustez fático-jurídica, coloca em xeque não apenas a participação popular na tomada de decisões do poder executivo, como também o nosso futuro comum, consistente na destruição de nossas riquezas ambientais que, ademais, são nossas únicas riquezas. A vida é um dom.
Quando o céu cair, lembraremos que não comemos e nem bebemos dinheiro. E, se a Constituição está mesmo em queda, mais que a desconstituição de um conselho municipal, em Carrancas, se trata da defesa da vida.
Como disse certa vez Ailton Krenak, “o mundo é duro porque a gente soca ele com patas de vaca”. A boiada passou — e continua passando! Amaciar a dureza do mundo, já tão socado pela gana exploratória, que não cansa de devorá-lo, é, mais do que nunca, a urgência do tempo presente.