A Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemg/Codemig), empresa estatal mineira, ingressou com ação na Justiça para questionar o registro municipal das práticas culturais de coleta de águas de Caxambu, cidade do Sul de Minas Gerais. O decreto municipal 2866, de 23 de fevereiro de 2021, homologou a aprovação do registro da “Coleta de Águas Minerais no Parque das Águas Lysandro Carneiro Guimarães” como bem cultural imaterial, devidamente aprovado pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Caxambu (Compac).
O registro, inédito no Brasil, transformou o ato de coleta de água mineral na fonte, prática centenária nas estâncias hidrominerais da região, em patrimônio cultural e imaterial, reconhecendo e valorizando a prática e destacando a relação dos povos das águas — moradores do Circuito das Águas da Mantiqueira — com suas águas minerais.
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O hábito de coletar água nos parques integra a identidade cultural da região e perfaz a memória histórica e afetiva com as águas minerais, desde os povos originários sul-americanos que viveram na região, nos períodos pré e pós-colonial, dos troncos etnolinguísticos Tupi e Jê. Segundo os saberes locais, as águas têm o poder de cura e traz o bem-estar. Esse vínculo dos povos das águas com a sua própria ancestralidade foi alvo de diversas pesquisas acadêmicas no Brasil, que buscaram investigar a prática do uso simbólico e da coleta de águas minerais nas fontes, ao longo das histórias dos municípios do Circuito Sul Mineiro.
A partir desse registro municipal das águas caxambuenses, que brotam do solo naturalmente gaseificadas, de sabores diversificados, a ideia é que outras cidades do Circuito também consigam transformar a prática de coleta das águas minerais e medicinais nos parques de toda a região como patrimônio imaterial da humanidade. Ou melhor, como “matrimônio imaterial”, segundo linguajar dos povos locais, coletores das águas, que preferem essa nomenclatura, por ressaltar a relação dos veios d’água com a mãe Terra.
Guerra das águas
A Condemg/Codemig é a detentora do direito de lavra das águas minerais dos parques e, no caso específico de Caxambu, a empresa possui o título minerário do Manifesto de Mina 1046, de 1942. A estatal é responsável por investimentos e projetos no setor de mineração, viabilizando empreendimentos por parte do Estado de MG, dentre os quais se encontram as águas minerais do Circuito das Águas sul mineiro.
A polêmica do enquadramento das águas minerais como minério e não como água é antiga e perpassa o cenário das lutas políticas da região, que, historicamente, enfrentou batalhas sociais e jurídicas contra as exploradoras de águas, inclusive contra a gigante Nestlé, em São Lourenço, em conflito socioambiental mundialmente conhecido.
Tais distorções se devem ao fato de que as águas minerais são regidas pelo Código de Águas Minerais de 1945, que se encontra completamente ultrapassado e desarticulado em relação à realidade das águas minerais no Brasil. O Código de Minas é de 1940, embora tenha sofrido atualizações em 1967. A legislação é apontada como “autoritária”, “centralizadora” e “insustentável” quanto às águas minerais, segundo as pesquisas na área.
Já a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), conhecida como Lei de Águas (Lei 9433/1997), constitui legislação mais policêntrica, democrática e sustentável e tem como moldura outro panorama: garantir a disponibilidade de água à atual e às futuras gerações, com utilização racional e integrada dos recursos hídricos, baseada na ideia de desenvolvimento sustentável, prevenindo e defendendo o país contra possíveis eventos hidrológicos.
As guerras das águas minerais foram tema de diversas pesquisas, que buscaram retratar os conflitos históricos contra a exploração das águas minerais no Sul de Minas. Muitos trabalhos em tema de justiça ambiental têm apontado para a instituição de novo marco regulatório para as águas minerais, conectado com a integração no âmbito da gestão de recursos hídricos e com a aplicação de princípios econômico-ecológicos, que garantam a exploração sustentável e benéfica aos povos locais, considerado o uso sustentável e a memória cultural da região.
A polêmica ação na justiça
Em novas cenas do capítulo da guerra das águas, a empresa estatal do governo de Minas Gerais, de Romeu Zema, Codemge/Codemig, detentora do direito de lavra das águas minerais dos parques, ingressou com mandado de segurança contra o decreto municipal de Caxambu, entendendo que o ato de registro da prática cultural da coleta de águas como patrimônio imaterial coloca em risco os seus direitos minerários. A ação corre na Vara Única da Comarca de Caxambu e aguarda julgamento.
As alegações, no entendimento das entidades ambientalistas da região, são esdrúxulas e incabíveis, posto fundadas em comentários feitos nos documentos técnicos, consistentes no “Inventário de Registro”, documento obrigatório para o tombamento municipal.
O incômodo do governo de Romeu Zema, através das estatais Codemge/Codemig, concentra-se em comentários técnicos da documentação obrigatória, exigida no artigo 11 da lei municipal 1.906, de 2009. Entre os pontos criticados pelo governo, estão observações sobre a necessidade de nova legislação que garanta o uso sustentável das águas minerais e sobre evidências empíricas quanto à prejudicialidade e riscos do envasamento em possível superexploração de águas, apontados brevemente no “Inventário da Coleta de Águas Minerais” e circunstanciados em documentos de cunho sociológico e antropológico.
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No entendimento dos caxambuenses, o alegado no mandado de segurança não merece prosperar. Segundo a antropóloga Mariana Gravina Prates Junqueira, diretora de Cultura do município de Caxambu, o questionamento em sede judicial por parte da Codemg/Codemig não encontra amparo, posto que o “Dossiê e Inventário da coleta de águas minerais de Caxambu não tem o condão de interferir na liberdade econômica da empresa estatal, tratando-se de mera documentação técnica obrigatória exigida na legislação municipal, não podendo se falar em ingerência no exercício dos direitos minerários por parte dessa documentação, que guarda toda a liberalidade para conclusões científicas dentro de suas respectivas áreas”.
Ainda segundo a diretora de Cultura do município de Caxambu, o que foi objeto do registro foi “o uso e o costume de beber a água, ressaltando a importância simbólica e de memória cultural para os povos das águas da população de Caxambu, o que não tem nenhuma relação com propriedade ou posse da água”.
Assim, as alegações das estatais Codemg/Codemig são meramente concernentes à insatisfação com a documentação técnica consistente no dossiê de registro, tratando-se, pois, de guerra simbólica, a guerra das águas continuada que não aceita a participação da população local na conservação de seus hábitos e costumes ancestrais. Notadamente em se tratando de bens ambientais que são de enorme interesse por parte da exploração predatória de gigantes do ramo alimentício, como Nestlé, Ambev, Coca-Cola, dentre outras.
Curiosamente, a Codemg/Codemig se esquece que se trata de empresa pública e que, portanto, o parque de Caxambu também é público. As suas alegações no processo judicial se fundam apenas em valores como “liberdade econômica” e “direito à propriedade”, portanto, trata-se de empresa pública defendendo valores nitidamente privados, em prejuízo da memória e da ancestralidade dos povos locais, que têm o direito histórico à coleta e uso das águas minerais.
O governo de Minas, hoje representado por Romeu Zema, alega, em âmbito judicial, “ofensa à propriedade privada” como direito fundamental do Estado Democrático de Direito, em nome dos seus acionistas e em prejuízo da comunidade caxambuense, esquecendo-se de compreender que, no âmbito deontológico, estamos diante de caso prático do registro de bens culturais.
No equilíbrio dos princípios fundamentais, em conflito entre o direito à memória e o direito à propriedade, deve prevalecer o direito à memória cultural, historicamente, culturalmente e constitucionalmente protegido, do qual o juiz de direito da comarca de Caxambu, que vai analisar o caso, deve ser garantidor.
Nesse sentido, conceder o acesso aos parques não é ato de mera liberalidade da empresa estatal, enquanto concessionária de direitos de exploração dos recursos hídricos, mas direito ancestral da população caxambuense, notabilizado no tombamento por meio dos protocolos legais, através do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Caxambu (Compac).
Proteger os saberes e o direito à coleta de águas do município de Caxambu, em detrimento dos interesses do capital, é resistir ao tempo presente e à gana predatória e exploratória, afeita às mineradoras e às exploradoras de água mineral. É fomentar o direito à memória, à identidade e à formação da comunidade dos povos das águas em torno das suas águas, bem cultural e ambiental de máxima importância que ficará, cada vez mais, em tempos de catástrofe climática, em risco.
*Ana Paula Lemes de Souza é doutoranda em direito na FND/UFRJ.
Edição: Larissa Costa