Acreditar que qualquer um é melhor que Bolsonaro pode revelar apenas o apego aos bons modos
Para a burguesia brasileira, Bolsonaro não era a doença, era a cura. Sua eleição foi construída a partir do seguinte enredo: golpe jurídico-político-midiático para tirar Dilma do poder, prisão de Lula e inviabilização de sua candidatura, apoio ao candidato capaz de cumprir a missão de destruir o caminho que vinha sendo trilhado pelos governos populares. Em outras palavras: tudo pelo antipetismo e o que ele significava, ainda que timidamente, em termos de políticas distributivas, igualdade e inclusão.
Além do mais, certa postura bagaceira de Jair Messias tinha certo valor eleitoral, despertando monstros que até então se envergonhavam da própria estupidez. Somado ao militarismo que o candidato defendia como se fizesse parte da corporação – e não um alijado vergonhosamente dos quartéis – o pacote estava completo. O ex-capitão podia não ser o melhor nome – era grosseiro, limitado e sem turma –, mas tornou- se o mais viável. Era o que a direita tinha no momento.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu celular. Clique aqui ::
Para levar adiante o projeto de regressão do Estado social e ataque aos direitos conquistados, não se contava apenas com o tosco militar e os ratos que se animavam em sair dos esgotos. Vários setores se engajaram na história, da imprensa solerte na torcida pelo impeachment à lava-jato, com os ingredientes de sempre: retórica anticorrupção, lawfare e moralismo.
O estágio com Temer parecia promissor, sobretudo porque era passageiro, e estava determinado a iniciar o serviço sujo até que a eleição conferisse legitimidade ao desmonte planejado. O protagonismo de Moro já deixara de ser promessa. A presença internacional, com os EUA à frente, era uma espécie de carimbo. Os próceres do neoliberalismo, como o apalermado Guedes, se assanhavam, tratando o século 21 com a linguagem dos anos 1980 do século passado. Tudo parecia ir muito bem.
Mas faltou combinar com os russos. Bolsonaro era considerado uma excrescência, mas certamente seria controlável. Ficaria devendo sua eleição aos patronos do mercado, da mídia e da Faria Lima, sem falar dos políticos de direita de sempre, com um puxadinho em direção ao Centro, com a presença de tucanos e outros candidatos entusiasmados em fazer dobradinha gerando siglas eleitorais hoje renegadas. Bolsofraudes.
O tempo se encarregou de revelar a tragédia anunciada. O país se afunda em crises. A economia patina, o meio ambiente vem sendo destruído, a educação regrediu aos delírios olavistas, a pauta dos costumes caiu no colo dos evangélicos, a segurança pública segue a lógica das milícias. A confiança internacional foi perdida, levando o país a uma posição de pária orgulhoso.
A cultura foi destruída por gestões seguidas, as políticas de direitos humanos e inclusão passaram a ser consideradas comunistas. As universidades perderam recursos e autonomia. A pesquisa foi paralisada. As instituições vêm sendo atacadas, os direitos que se julgavam consolidados foram extirpados e, por fim, a democracia e até as eleições estão em risco real e imediato.
A confiança internacional foi perdida, levando o país a uma posição de pária orgulhoso.
Com a emergência sanitária da pandemia da covid-19, a incompetência se tornou um atentado contra a vida, que já matou mais de 540 mil pessoas. Grande parte em razão da inépcia, negacionismo e, ao que tudo indica, corrupção em larga escala que colonizou o Ministério da Saúde, recheado de militares em postos de decisão. Para quem achava que era apenas ignorância, a realidade está fazendo questão de mostrar que era crime premeditado.
A política sanitária seguiu uma corrente de negativas: não se estabeleceu a coordenação central responsável, não se informou à população sobre a doença e seus cuidados (até mesmo a contabilização de casos e mortes precisou ser assumida pela imprensa), não se testou, não se garantiu insumos imprescindíveis (como oxigênio), não se respeitou a ciência. O governo não comprou milhões de vacinas quando era possível – ou, de acordo com CPI do Senado, quando a janela de oportunidades de ganhos espúrios estava fechada.
Além de não fazer, quando resolveu agir, atuou com charlatanismo incentivando uso de medicamentos inúteis para dar falsa sensação de segurança e atender os interesses do mercado de trabalho e do mercado de produção farmacêutica. Além disso, jogou contra medidas preventivas com maus protocolos e péssimos exemplos, a começar pelo presidente. Sem falar no esforço em atrapalhar estados e municípios que faziam seu trabalho.
Mau cheiro e bons modos
Tudo isso deveria parecer suficiente para entender que Bolsonaro não servia para a função, mesmo que não se esperasse dele mais que a postura decorativa, como biombo para os interesses de classe. No entanto, os patrocinadores de sua eleição mantinham a crença de que ele sustentaria sua principal tarefa: garantir a primazia do capital e recuperar o padrão de desigualdade que a sociedade brasileira parecia ostentar como destino.
Com isso, o conservadorismo moral de fancaria, a aliança com o preconceito, a entrega de anéis e dedos para o Centrão, a proximidade com as milícias, a saudade de torturadores, a quartelização do serviço público e o gozo com armas serviriam apenas de contrapeso. Uma espécie muxiba política. O que era periferia moral se tornou o núcleo do governo. Bolsonaro estava liberado para se divertir com essa agenda, deixando os negócios na mão dos adultos na sala.
Até que começaram a fraturar alguns aspectos considerados mais graves, se é que pode haver algo mais grave que defender a tortura. Foram atos e palavras que foram dos maus modos à corrupção pura e simples. O mau cheiro passou a dominar os ambientes em que o presidente estivesse presente. Seu estilo e vocabulário mimetizam sua atuação: tudo que ele tocava parecia imundície. A massa limpinha passou a tapar o nariz com saudade de seus tucanos de estimação.
O militar defenestrado passou a atacar a imprensa, a proferir grosserias escatológicas e demonstrar incompetência em todas as áreas, com destaque para a saúde. Uma coisa era espalhar mentiras, outra era defender a imunidade de rebanho como estratégia de combate à pandemia. O que era risco de morte dos pobres expostos ao vírus pelas necessidades da economia se tornou ameaça a todos.
Não tardou a se revelar, também na área da saúde, o peso da corrupção tácita, numa ampliação da escala miúda que sempre marcou presença em sua trajetória. De uma hora para outra, da rachadinha brotava uma profunda fenda na negação seguida de negociata no caso das vacinas. Mas a rota de destruição não parava por aí. Ao colocar em xeque a democracia e as eleições, o alarme tocou no painel de controle da direita.
Quando a imprensa burguesa e parte dos arrependidos responsáveis por essa situação passaram a se alinhar ao afastamento do presidente, tudo parecia retomar o rumo da racionalidade. Passou-se a falar em frentes, diálogo, convivência de adversários, tudo em nome de um interesse comum inadiável: o Fora, Bolsonaro! Até que a resistência do nome do presidente, na casa de um quarto da população, mantivesse o genocida no páreo.
Ou seja, tudo indicava que a única alternativa era concentrar-se no nome mais forte da oposição, de modo a vencer de vez o inimigo maior. Quando a direita que gosta de ser chamada de liberal e a extrema direita que se autodefine como centro se deram conta, Lula estava de novo à frente das pesquisas, como o nome mais forte para derrotar Bolsonaro no ano que vem. Outro alarme soou quando a chamada terceira via se esvaiu.
Foi o suficiente para que o antipetismo voltasse à cena. Esse é o enredo que explica hoje o antibolsonarismo de defensores do presidente até poucos meses atrás. A se manter a atual correlação de forças, Lula é a única possibilidade de retomar a democracia no país. Por isso é preciso mudar o cenário. O que significa tirar Bolsonaro do jogo, abrindo espaço para uma candidatura para disputar com Lula em 2022.
:: Saiba quais são as produções de rádio do BdF MG e como escutar ::
O antibolsonarismo, nesse momento, é antessala do antipetismo. Só afastando o presidente é possível ensaiar a dupla vitória: retirar o encarregado que se mostrou imprestável e recolocar o país na esteira do projeto neoliberal. A jogada do nem-nem (nem Bolsonaro, nem Lula), já está em campo. Mas para ir adiante é preciso tirar o monstro da reta. Quando a imprensa hegemônica, empresários e parlamentares conservadores se tornam defensores da democracia é bom ativar a memória histórica.
A direita está jogando suas cartas, usando tudo o que tem à mão: Cuba, semipresidencialismo, terceira via, convites a Lula para abrir mão de sua candidatura em nome da convergência, CPI, entrevistas no Bial, “progressistas” na Globonews e CNN, voto impresso, PCO e tudo que ajude a desestabilizar as forças democráticas e populares.
Não se trata de deixar as fileiras do Fora, Bolsonaro! Cada dia a mais do genocida no poder é uma ameaça à democracia e à vida dos brasileiros e, por isso, é fundamental protagonizar as manifestações de rua, denunciar os crimes e participar de todos os atos contra o governo. Mas é preciso estar atento e forte. Acreditar que qualquer um é melhor que Bolsonaro pode revelar apenas o apego aos bons modos.
Edição: Larissa Costa