História mostra que não há antinomia entre trabalho decente e direitos sociais
A construção da institucionalidade trabalhista no Brasil deriva de um doloroso processo ao longo desses dois séculos de independência. É possível traçar essa trajetória a partir de 5 recortes históricos.
O 1º recorte parte da assinatura da Lei Áurea, em 1888, que ao extinguir a escravidão inaugurou a experiência liberal de mercado de trabalho no país. Na prática, milhares de indivíduos escravizados passaram a ter que buscar a sobrevivência por seus próprios meios, sem nenhuma proteção governamental, tampouco direito a ressarcimento pelos anos de trabalhos forçados. As revoltas, resistências, lutas e organizações dos/as trabalhadores/as escravizados/as, continuaram no pós-abolição.
A partir de 1930, iniciou-se o 2º período na construção da institucionalidade trabalhista brasileira, com a criação do Ministério do Trabalho, que passou a ser o locus político das inovações jurídicas desde então, tais como: a legislação sindical, a Justiça do Trabalho, a Carteira de Trabalho e o Salário Mínimo.
Em 1943 foi sancionada a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) a partir do conjunto de normativas já vigentes. Desde seu surgimento a CLT foi objeto de divergências, dada a extensão temática que ela abrange.
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Em 1964, uma coalizão encabeçada pelas Forças Armadas, com apoio de setores civis, efetuou um golpe militar, iniciando o 3º período na formação da institucionalidade trabalhista. O governo militar praticou uma política ambígua no tocante aos direitos trabalhistas. Por um lado, atuou de forma repressiva contra a livre organização dos trabalhadores: aboliu o direito de greve, interviu diretamente nos sindicatos e arrochou salários, por exemplo. Por outro, expandiu a cobertura da previdência social, com a criação do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) e do Funrural.
O processo de transição democrática teve como um de seus desdobramentos a formação da Assembleia Nacional Constituinte, responsável por elaborar o texto da Constituição Federal de 1988. Podemos considerar a CF/88 como marco do 4º período aqui analisado. Além de consolidar pontos da legislação trabalhista sob ataque conservador, ela garantiu avanços em outros temas importantes, como a redução da jornada de trabalho, o seguro-desemprego e a licença-maternidade de 120 dias.
Nos anos 1990, uma série de mudanças de cunho neoliberal, como a redução abrupta dos instrumentos de proteção da indústria nacional, levou a uma queda maciça do emprego. Nem a euforia com o Plano Real em 1994 foi suficiente para reverter o quadro de deterioração laboral no país. Com isso, uma nova onda de ataques à regulamentação do mercado de trabalho veio à tona, mas não afetou significativamente a estrutura normativa, muito em função da reação sindical e dos movimentos populares.
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A vitória de Lula em 2002 representou uma contratendência a esse movimento. O novo governo tirou de pauta as propostas de reforma trabalhista que tramitavam no Congresso. Com a recuperação da economia, a capacidade de criação de empregos expandiu nos diversos setores: no decênio 2005-2014, o saldo líquido de empregos formais cresceu 50%, chegando a um estoque de 49,6 milhões de trabalhadores registrados, maior índice já alcançado.
Tudo isso sem flexibilização de direitos, o que demonstra a falácia do argumento liberal de que a CLT era, per si, um empecilho à expansão econômica e do emprego formal.
Contudo, uma reversão de trajetória se deu em meio a uma grave crise política e econômica, com queda no PIB de 7% entre 2014 e 2016, e a taxa de desemprego praticamente dobrando no mesmo período (6,9% para 13,5%). A desestabilização levou ao Golpe Parlamentar de 2016, dando início ao 5º período aqui analisado.
Presidente já manifestou que o ideal é que o trabalho registrado “beire a informalidade”
O novo governo apresentou sua proposta de reforma trabalhista, com o intuito de reduzir o papel da legislação, da Justiça do Trabalho e dos sindicatos na regulação sobre o uso e a remuneração da força de trabalho. Desde sua aprovação, no início de 2017, o mercado de trabalho pouco reagiu. Ainda que o desemprego tenha cedido um pouco até o final de 2019, a queda registrada se deveu, basicamente, à expansão da informalidade.
Com a chegada da pandemia ao Brasil, 10 milhões de postos de trabalho evaporaram-se entre abril e junho de 2020. Com resposta governamental insuficiente, o país fechou o ano com a maior taxa de desemprego de sua história, 14,2%, com mais de 14 milhões de brasileiros em busca de ocupação.
O que esperar?
Neste contexto de extrema precarização dos vínculos laborais, o atual Presidente já manifestou, no auge de sua ignorância, que o ideal seria que o trabalho registrado “beirasse a informalidade”, e que os brasileiros precisam escolher entre “ter direitos ou ter emprego”.
Porém, a história mostra que não há antinomia direta entre trabalho decente e direitos sociais, e sem uma mobilização efetiva dos trabalhadores em defesa de seus interesses, corremos sério risco de cruzar o Bicentenário da Independência sem nada termos a comemorar.
Sandro Pereira Silva é economista e pesquisador do IPEA.
Edição: Rafaella Dotta