Por que não dá para recarregar o cartão em qualquer banca de jornal?
Por Annie Oviedo
Entra e sai ano. Legislaturas e governos começam e terminam. Saturno vai e volta, algumas vezes. O transporte desta cidade continua ruim.
Todo político entrou ao menos uma vez em uma estação do MOVE e disse, com cara séria e voz grave, que não era possível aquela situação, que ele iria resolver o problema. E os nomes para descrever o problema variam: lotação, caixa-preta, falta de gestão, corrupção. Pois bem, a realidade enfrentada pelo passageiro de ônibus da cidade de Belo Horizonte é uma, uma apenas: o transporte coletivo é caro e ruim.
Dá para elaborar. Com um sistema de cálculo da tarifa baseado em índices ligados à inflação e não aos custos reais de operação, a passagem sempre aumenta. Isso é um fato. Desde que esse contrato começou, em 2008, há mais de 10 anos, ela nunca diminuiu, com exceção de 2013 por pressão popular. As empresas cortaram custos reduzindo linhas, demitindo trocadores ilegalmente, diminuindo a oferta de viagens, e nada, absolutamente nada disso, teve impacto algum na redução da tarifa.
Se tem multa, as empresas não pagam
Veja bem, leitor, que O MOVE, em tese, foi vendido como um meio de aumentar a eficiência e reduzir os custos das empresas. A obra foi paga com dinheiro público e os veículos financiados. A tarifa só aumentou.
Com a atual situação de pandemia a precarização foi escancarada. Os empresários, sem vergonha alguma, só aprofundaram o problema. Corte de viagens, sumiço de linhas, redução drástica da oferta quando mais precisamos de espaço para respirar. E assim vamos. Se tem reclamação, as empresas não ligam. Se tem multa, as empresas não pagam.
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A Prefeitura injetou dinheiro, vários comércios e serviços reabriram, mas a oferta de ônibus segue baixa, no nível dos cortes de viagens da pandemia, e a vida do passageiro um inferno. Não à toa nos chamam de passageiros cativos.
Mas eis que veio a CPI. O movimento Tarifa Zero BH, em um primeiro momento, respirou fundo e disse: CPI da BHTrans de nada adianta. O dinheiro do transporte coletivo está na mão das empresas, não da BHTrans. Então os vereadores eleitos responderam: não se preocupem, chamaremos os empresários, iremos fundo na investigação, não há de ficar pedra sobre pedra. Dissemos, ok, então. Vamos acompanhar.
CPI da BHTrans
E, de fato, para real espanto da cidade, empresários foram convocados a depor, o Ministério Público de Contas levantou sigilos e mostrou indícios seríssimos de crimes, falcatruas e contravenções variadas. O MP de Minas Gerais está tentando fazer uma força-tarefa.
Diante do amplo leque de crimes, ilegalidades, eventos mal explicados e desonestidades, a Prefeitura propõe agora um Comitê de Repactuação do Contrato. Quer dizer: o sistema é terrível para o usuário, insustentável em termos de preço, gerido por contraventores reincidentes, mas é com eles mesmo que vamos sentar à mesa e continuar trabalhando.
O sistema é bancado por seus usuários, mas essa festa da democracia de repactuação não é de entrada franca: só senta à mesa, além da contravenção e do governo, quem for convidado. Nós, que pagamos, não.
Haveria um lugar democraticamente constituído para essas discussões: o COMURB, Conselho Municipal de Mobilidade Urbana. Com seus defeitos e limitações, pelo menos seria um espaço institucional previsto para essa função. Mas, durante os mais de 50 meses de prefeitura de Alexandre Kalil, ele nunca foi convocado. Apenas no último mês houve a rodada de eleições para o setor técnico e empresarial do Conselho.
Anos e anos dependendo do transporte coletivo, desejando, se organizando e lutando para que ele seja instrumento de conexão e democratização, e não de exclusão, para ver que o presidente da BHTrans e o prefeito acham melhor não abrir um debate com a sociedade. “Melhor não, porque o usuário não entende”. O empresário, que ameaça, comete crimes, não revela seus gastos e lucros, ah, este sim senta à mesa e sua opinião é a que conta.
Cadê os painéis de horários?
O que os luminares da administração pública propõem? Ouvi do presidente da BHTrans que o negócio é um sistema de tecnologia para que o transporte funcione sob demanda. Faz-me rir. Na Praça da Savassi, para ficar em apenas um exemplo da rica zona sul, há ponto de ônibus em que há painel eletrônico de propaganda, mas não há painel eletrônico que mostra em quanto tempo o ônibus vai passar.
Nos bairros então, nenhum desses painéis deu as caras. Se você quer recarregar o seu cartão, não pode ser ônibus porque não tem mais cobrador. Nos pontos específicos, que são poucos e quase todos no centro, só em dinheiro vivo. Para recarregar com cartão de débito você precisa de um aplicativo separado - e ainda tem que pagar uma taxa extra.
Por que não dá para recarregar o cartão em qualquer banca de jornal? Por que não tem painel eletrônico em todo lugar da cidade? Por que o SIU Mobile vive dando problema e ninguém conserta? E ainda têm coragem de dizer que a tecnologia vai resolver. Sei. Nunca precisou de ônibus, né, presidente.
Outra proposta é o transporte sob demanda. Se nem o Uber a gente consegue chamar hoje em dia, no centro da cidade, imagina na periferia. O Uber ganha dinheiro na bolsa né, no resto ele dá prejuízo. Faz-me rir mais um pouco achar que é esse o caminho.
A questão é exatamente oposta: precisamos de um transporte perfeitamente confiável, que passe no horário previsto, em muitos horários. Sob demanda significa escasso, ou seja, caro e pouco confiável. Mas os legisladores acham que o usuário cativo não sabe do que precisa.
Parece-nos evidente, então, que os administradores e demais eleitos e estatutários, neste momento, ou querem fazer conciliação com a contravenção, mantendo para conveniência destes um sistema caro, precário e que torna nossa vida muito pior, ou não sabem muito bem o que fazer.
Santiago, Bogotá e Rio
Abram o jogo. Ousem. Santiago, Bogotá, mesmo o Rio de Janeiro, olharam para essa insustentabilidade de frente e estão tentando fazer algo diferente. Se a capital mineira é capaz de criar um Comitê, então que se crie um grupo de trabalho para entender como esses exemplos podem ser aplicados aqui.
Pensem bem: o medo das empresas trancarem os ônibus nas garagens e travarem a cidade só demonstra como o poder delas é absurdo. Como pode um punhado de atores sociais deter esse poder?
Nos parece melhor dizer: não temos certeza, mas vamos olhar a dificuldade de frente e procurar soluções, do que lançar esses pseudo discursos disruptivos apresentando soluções de já demonstrada ineficácia. Tem CPI para investigar e punir, ao gosto de Foucault, mas o governo quer continuar negociando com esses atores. Há bons exemplos, de gente tentando fazer diferente, mas o governo faz meias-propostas que não resolvem nossos problemas.
É isso, então? Estamos condenados? Ninguém capaz de dizer em voz alta: precisa de subsídio, vamos tentar achar um jeito, precisa de mais controle, vamos tentar reduzir o poder do empresariado em prol da cidade?
Daí alguém queima uns pneus, fecha uma avenida e todo mundo corre para gritar bandidos. Experimenta depender de ônibus.
Annie Oviedo é passageira de ônibus e integrante do Tarifa Zero BH
Edição: Elis Almeida