O Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Belo Horizonte aprovou, na última semana, uma resolução contra a proposta de interdição dos Centros de Referência em Saúde Mental (Cersam) em Belo Horizonte. O posicionamento, que conta com a adesão de usuários dos centros, profissionais e conselheiros, foi defendido em coletiva de imprensa na sexta-feira (13), na sede do Conselho.
“Não existe remédio que coloque a liberdade dentro de alguém”
Em uma plenária que contou com a participação de mais de 400 pessoas, o CMS reafirmou a defesa da rede de atenção psicossocial do SUS e dos Cersams, cobrou que a Secretaria Municipal de Saúde apresente um plano de ações, em até 30 dias, para enfrentar os problemas dos centros e que acione a Procuradoria-Geral do Município para defender os Cersams.
Desassistência
A resolução do CMS também recomenda à entidade que propôs fechar os Cersams, o Conselho Regional de Medicina (CRM), que reveja sua posição. No dia 24 de julho, o CRM anunciou que adotará medidas para interditar o trabalho de médicos em Cersams, apontando falta de psiquiatras nos plantões. “Na avaliação do CRM-MG, estes fatos são graves e devem ser solucionados o mais rápido possível”, avalia.
Essa posição, entretanto, não é consensual na área médica, entre os demais profissionais de saúde e entre os usuários do serviço. No dia 5 de agosto, houve uma manifestação na porta do CRM, criticando a proposta. Uma nota foi publicada, com a assinatura de organizações que reúnem profissionais de saúde em Minas Gerais.
“Há um movimento poderoso, de retorno ao manicômio”
“A interdição significa uma desassistência às pessoas com sofrimento mental. Nós temos uma rede com experiência exitosa em tratar as pessoas em liberdade, com uma equipe multidisciplinar. Quando um conselho profissional tenta interditar os 16 serviços de uma vez, isso pode ser muito prejudicial”, argumenta Carla Anunciatta, presidenta do Conselho Municipal de Saúde.
O centro é o médico ou o usuário?
“O tratamento de saúde mental para produzir vida precisa estar inserido na comunidade. A equipe precisa ser diversificada, que colabore entre si, sem disputa de poder. O tratamento precisa ser usuário-centrado [que tome o usuário como o centro]. É isso o que eu vivencio e estou muito bem nesse tratamento”, afirma Sílvia Ferreira, usuária do Cersam Pampulha há 16 anos e integrante da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental (Assussam).
Sílvia e representantes de outras entidades, presentes na entrevista coletiva, disseram que o modelo de saúde mental vigente no SUS BH é um avanço conquistado na luta antimanicomial e na Reforma Psiquiátrica. No lugar da privação de liberdade e da medicalização, esse modelo trouxe um tratamento real do sofrimento mental, com o apoio de profissionais de diversas áreas e da comunidade, buscando cuidar, em liberdade, das pessoas que enfrentam o sofrimento mental.
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“Para a pessoa viver em liberdade, ela precisa conseguir pegar um ônibus, ter uma escola, um lugar aonde ela vá trabalhar. E isso a gente não constrói só medicando as pessoas, não existe remédio que coloque a liberdade dentro de alguém. Para isso, precisamos de pessoas que estejam ao lado. O manicômico é um lugar onde todas as relações estavam confinadas em um lugar específico. E o manicômio não está só dentro dos muros de um lugar, existe uma forma de pensar que é manicomial. E é contra isso que a gente, no Cersam, trabalha”, acrescenta a terapeuta ocupacional Daniela Gomes, do Cersam Nordeste.
Para o psicólogo Fabrício Ribeiro, do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), a pandemia mostrou como a liberdade é importante. “Se há alguma dúvida de que a liberdade não faz bem para a saúde mental, pensem na experiência dos últimos dezoito meses, quando fomos privados da liberdade de circulação”, ressalta.
Fabrício acrescenta que a rede de saúde mental em Belo Horizonte é robusta, complexa e precisa de investimentos, mas também é preciso romper com a lógica de que há hierarquias entre áreas de atuação. “Nosso desejo é que toda intervenção para o povo, para a população, seja centrada no usuário”, reforça.
Interesses em jogo
Além de usuários e profissionais de saúde, também estiveram presentes as vereadoras Bella Gonçalves (Psol) e Duda Salabert (PDT) e o vereador Pedro Patrus (PT). Os parlamentares questionaram o fato de a discussão sobre os rumos do Cersam não ter passado pelo Conselho de Saúde e pelos espaços de referência do debate em saúde mental. Uma audiência pública está sendo organizada para pautar o fortalecimento dos Cersams.
“O que querem colocar em prática, por meio dessa perseguição ao Cersam, é um modelo de sociedade antigo, com as subjetividades encarceradas, e que corpos como o meu parem de transitar na sociedade, na Câmara, e voltem para os manicômios. Para nós, travestis e transexuais, só nos foi dado o ponto de prostituição ou o manicômio”, recorda a vereadora Duda Salabert.
O médico psiquiatra Políbio José de Campos, coordenador da Residência de Psiquiatria do Hospital Odilon Behrens, relata que a proposta de interdição foi construída sem dialogar com muitos psiquiatras. “Eu me declaro como médico do SUS. Mas há outros interesses em jogo, econômicos, do empresariado manicomial, dos hospitais psiquiátricos no Brasil. Há um movimento poderoso, de retorno ao manicômio”, aponta.
Segundo Políbio, nos últimos anos, esse setor econômico foi muito privilegiado, com o pagamento de diárias de alto valor. "Tem o interesse da Big Pharma, pois o nosso serviço é blindado contra a influência dos grandes laboratórios. Quando vocês forem entrevistar meus colegas, perguntem a eles quantas palestras eles deram para a indústria farmacêutica, quantos projetos de pesquisa a Big Pharma tem financiado para esses colegas”, sugeriu o psiquiatra aos jornalistas presentes à coletiva.
Ação judicial
O Conselho Municipal de Saúde informou que, nos próximos dias, pretende ajuizar, por meio do Ministério Público de Minas Gerais, uma ação questionando a tentativa de interdição do trabalho médico nos Cersams.
Edição: Elis Almeida