Minas Gerais

ANYKY LIMA

Ocupantes de imóvel da Localiza são remanejados para abrigo, por determinação de juiz

Resultado do atual momento econômico nacional, moradores perderam renda na pandemia

Belo Horizonte (MG) |
Reprodução - CPT

Nesta terça-feira (24/8), os ocupantes de imóvel pertencente à Localiza foram remanejados para uma pousada. Eles foram despejados do local após o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) acatar o pedido da empresa para expulsá-los.

 Eu perdi meu emprego e aí não teve como nós pagarmos o aluguel

Até recentemente, segundo os ocupantes, a rede de lojas de aluguel de carro não dialogou com eles. Hoje, porém, ela comprometeu-se a pagar uma pousada às 20 pessoas que estão na casa, no bairro Lourdes, Belo Horizonte. 

O pagamento do aluguel irá ocorrer até que a prefeitura da capital possa acolher os ocupantes por meio de políticas públicas como o Bolsa Moradia.

Todos ocupantes perderam renda

Na segunda-feira (23/8), os integrantes da ocupação, chamada de Anyky Lima, protestaram no centro da capital contra a decisão do TJMG. Enquanto ocorria o protesto, lideranças da ocupação se reuniram com representantes da prefeitura de Belo Horizonte, que decidiu entrar no processo para suspender a decisão. O peticionamento do Executivo ocorreu no fim desta segunda. 

Perda de renda com a pandemia

A ocupação Anyky Lima chama atenção em razão de ser resultado do atual momento econômico nacional. O motivo de grande parte dos ocupantes estarem no local foi a perda de renda, sobretudo nos últimos meses. 

Yula de Azevedo tem 43 anos. É casada e junto com o marido está na ocupação há 1 mês. Ambos são de Ipatinga, onde ela trabalhava em uma clínica veterinária como tosadora. O companheiro “fazia bicos”. “Eu perdi meu emprego e aí não teve como nós pagarmos o aluguel. Isso, junto com outros problemas familiares, nos fez vir para Belo Horizonte”, contou Yula. “Quando chegamos aqui uma amiga minha disse que havia uma vaga aqui na ocupação. Aí, viemos”. 


Yula em seu quarto / Marcelo Gomes

“A localiza nunca veio aqui para conversar conosco. Nós não invadimos isso aqui. Invasão é uma coisa. Ocupação é outra. Ninguém nasce na rua. Viemos por precisão”, desabafou. 

A reportagem visitou a ocupação e constatou que praticamente todos os 20 ocupantes do imóvel estão lá mediante perda de renda. Uns perderam os rendimentos nos últimos meses. Outros já enfrentam essa situação há mais tempo. 

Esse é o caso de Larissa Prado, de 34 anos e do artista Gilmar Rodrigues, de 38. Ela vivia na rua há 3 anos. 

“Meu Deus, eu fico pensando: para onde iremos. Nossa, essa decisão já está tão perto. Será mesmo que eles farão isso com a gente? Eu estou na rua esse tempo porque estou sem emprego”, contou Larissa.

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Gilmar nos disse pouco sobre sua vida. Apenas mencionou que antes da ocupação vivia debaixo do alpendre daquele mesmo imóvel. O motivo para as poucas palavras foi a dor de dente que sentia no momento da conversa. 

E não é apenas ele que precisa de cuidados de saúde. Existe uma grávida no local e duas crianças. “Será que terão coragem de fazer isso? Aqui tem até criança. Para onde a gente vai ir?”, completou Yula. 

A ocupação existe há seis meses. O edifício é tombado pelo patrimônio municipal por ser histórico. Ao menos nos últimos dois anos ele era utilizado como casa de prostituição, fechada em razão da pandemia. 


Ocupantes lidam com a perda de renda durante a pandemia / Marcelo Gomes

No início desta terça-feira os ocupantes estão deixando o local para seguirem à nova moradia, provisória, que fica no bairro floresta. Todos decidiram ir pacificamente. A operação de despejo foi organizada pela Polícia Militar. 

Decisão controversa

O processo que correu no Judiciário de Minas chama atenção. Primeiro porque a última decisão, de primeira instância, concedida pelo juiz Ronaldo Batista de Almeida, estava sob sigilo. Na justiça, os processos sigilosos são apenas os da esfera Penal. Os de âmbito civil são abertos, exceto em quatro hipóteses, segundo o Código de Processo Civil (CPC): se tratarem de casos de família; em que haja intimidades pessoais expostas; bem como, o processo esteja sendo conduzido por arbitragem, ou seja, quando um terceiro media o conflito. O caso da ocupação não se encaixa nessas circunstâncias. 

Mas, há um quarto ponto no CPC que abre brecha para qualquer processo civil ser confidencial. É o interesse público do conflito. Embora a situação dos ocupantes tenha caráter social, o processo em si envolve apenas Localiza e eles. Em princípio, portanto, não há motivos à confidencialidade.   

O jornal teve acesso aos documentos do processo. No veredito de duas páginas do juiz, o embasamento legal à remoção forçada é o fato de o prédio pertencer à Localiza. 

STF

Para completar a controvérsia, a postura do magistrado se diverge da posição do STF. A maior corte do judiciário decidiu em 3 de junho deste ano que durante a pandemia não pode haver expulsões.  

Foi com base nesse argumento que a defensora pública da Defensoria estadual, Cleide Aparecida Nepomuceno, recorreu à instância superior do TJMG para anular o despejo. Porém, o desembargador José de Carvalho Barbosa manteve a expulsão. 

Seu principal argumento é que “não estão satisfeitos todos os requisitos previstos no parágrafo único do art. 995 do CPC”. Tais requisitos seriam os danos graves que podem ocorrer na hipótese da primeira decisão provocar “risco de dano grave, de difícil ou impossível reparação”, segundo o CPC. Fontes do ramo jurídico consultadas questionam se existe dano maior do que famílias irem às ruas. 

“Em conflitos como esse, deve ter uma audiência de conciliação. A própria lei prevê instância de mediação e prevê a realização de uma audiência de conciliação. E o órgão do estado para isso é a Mesa de Negociação”, explicou Cleide Aparecida. Ainda segundo ela, outra solução possível, existente em casos similares, seria o proprietário do imóvel pagar aluguel por determinado tempo aos ocupantes, como ocorreu.  

Papel da prefeitura

Nesta segunda-feira, o Executivo da capital decidiu intervir no caso. A Procuradoria do município informou ao TJMG a necessidade de estender o prazo do despejo para que os ocupantes possam ser inscritos em ações de acolhimento. A principal delas seria o Bolsa Moradia. Embora a expulsão tenha se concretizado, o Executivo mantém a promessa. 

Conforme a Lei Orçamentária Anual da prefeitura da capital, estavam programados ano passado a esse auxílio R$ 666 mil (DOM - Diário Oficial do Município). Para este ano está previsto um gasto de R$ 350 mil. Uma redução de aproximadamente 54% de um ano para outro. O valor destinado à ação em 2021 supriria menos de 60 pessoas recebendo por um ano R$ 500 mensal, que é o valor da bolsa. 

De acordo com dados do projeto Polos da Cidadania, da UFMG, existem em Belo Horizonte 8.840 pessoas em situação de rua. É bom lembrar que na mesma região da ocupação existem ainda outras duas, o que demonstra a necessidade do programa. 

A Assistente Social que acompanha o caso da Anyky Lima, Regina Paredes, faz uma severa crítica ao prefeito Kalil. “Ele prometeu antes das eleições atender 800 pessoas com o Bolsa Moradia. De acordo com dados da Urbel, que eu tenho, desde 2018 estão inscritos para ganhar o auxílio apenas 684 pessoas. Como uma pessoa vai ter dignidade sem imóvel?”, critica.

Resposta da Localiza

A empresa informou à reportagem que ofereceu apoio para o acolhimento das pessoas que ocupavam o imóvel. Destacou que a ação de reintegração foi acordada no início de agosto entre Ministério Público Estadual, Prefeitura de Belo Horizonte, Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), Subsecretaria de Direitos Humanos de Minas Gerais, BHTrans e Polícia Militar.

"Representantes de todas as entidades estiveram presentes na hora da ação para garantir que o processo fosse realizado de forma pacífica e respeitosa", alegou.

A Localiza afirma ainda que imóvel, por se tratar de patrimônio tombado pela Prefeitura de Belo Horizonte, passou por uma série de procedimentos prévios para a realização de obras de restauro e melhorias e que as reformas irão continuar.

Edição: Elis Almeida