Presídios e aldeamentos foram práticas com intuito de civilizar os selvagens e os disciplinar
Por Bruno Novelino Vittoretto
No ano de 2013, a escola de samba Unidos de Vila Isabel conquistou o título de campeã do grupo principal do carnaval carioca com o tema A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo – “Água no feijão que chegou mais um”. Já em 2016, a campanha publicitária Agro: a Indústria-Riqueza do Brasil ganhou as telas da Rede Globo de Televisão. Desde então, o bordão “agro é tech, agro é pop, agro é tudo” repetiu-se exaustivamente.
Esse tipo de narrativa, celebrado tanto na mídia como em uma das maiores manifestações populares do país, tem razão de ser. Isso porque na virada do milênio, contamos com um imenso recrudescimento das commodities agrícolas como o carro chefe da economia brasileira. É notável que o aumento da produção de produtos primário-exportadores possibilitou naquele momento toda uma agenda de investimentos internos em setores da economia brasileira.
Contudo, passado o momento de alta nos preços dessas mercadorias, o ano é 2021, às vésperas dos 200 anos da independência do Brasil, o país persiste na hegemonia deste modelo. Mas, o que os últimos dois séculos têm a nos dizer sobre esse momento?
Diria que a resposta pode ser encontrada em uma perspectiva histórica da fronteira. A construção do Brasil-nação, desde o início do século XIX, teve que lidar com a dinâmica da fronteira e os sentidos que ela representava para os atores sociais. Primeiro, a fronteira como demarcação territorial do próprio Império, que precisou estabelecer e incorporar suas áreas limítrofes em face das outras regiões da América na era das revoluções.
O indígena, o negro e os biomas arcaram com os custos mais altos desse modelo civilizacional imposto
Assim o foi na região platina, cujo fenômeno desembocou em um dos episódios mais violentos do continente, a guerra paraguaia.
Porém, a fronteira como fruto de nosso processo histórico vai muito além. Internamente, ele se comportou de forma que os assentamentos territoriais de populações brancas e/ou mestiças e seus agregados, foram estabelecidos em detrimento do indígena, que resistia aos processos resultantes de sua expulsão, massacre, imposição bacteriológica ou laboral. Mesmo após os 300 anos de colonização, os presídios e aldeamentos foram práticas que resistiram ao tempo no intuito de civilizar os selvagens e os disciplinar para o trabalho.
No campo, a perversidade da fronteira foi materializada pela itinerância da cultura exportadora predominante na paisagem local. Com um modelo de agricultura extensiva, transitamos da diversidade dos biomas para a predominância da paisagem monocromática do café, do cacau, do algodão, do fumo, e das pastagens causada pelo desequilíbrio das monoculturas.
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Nesses casos, o impacto da fronteira como atividade econômica não seria possível sem a realização de uma outra: a fronteira da diáspora.
Conectado ao Atlântico Sul, o surgimento do Império coincidiu com a máxima expressão da perversidade em busca de acesso à mão de obra, sobre a qual uma massa de pessoas foi violentamente desterritorializada de seu continente de origem (a África) pela escravidão. Os números disponíveis não mentem que as primeiras décadas do século proporcionaram uma curva ascendente do tráfico atlântico de pessoas escravizadas.
Já na cidade, os deslocamentos de fronteira foram se fixando em torno do surgimento de núcleos urbanos organizados pela câmara, cadeia e a prestação dos serviços públicos, mesmo que ainda ligados ao poder secular da igreja católica. Nestes espaços, a ideologia de superioridade racial ganhava adesão das elites locais, principalmente na região sudeste, coração do Império.
Isso porque o escravizado compunha a força de trabalho na construção civil, obras públicas, manufatura e indústria, assim como nos empreendimentos mais ambiciosos da ferrovia e da estrada de rodagem que venciam o sertão. Daí a aberração de nossa modernização, em que o sangue e o suor do negro escravizado foram utilizados indiscriminadamente na reprodução e aprofundamento das desigualdades.
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Todo o caráter de mobilidade da fronteira enquanto processo de construção do país, seja em sua expressão rural ou urbana, foi protagonizado por processos de violência desde então. O indígena, o negro e os biomas arcaram com os custos mais altos desse modelo civilizacional imposto de cima por tais deslocamentos.
Retornamos ao ano de 2021 e o cenário é de medidas autoritárias advindas de nossas instâncias superiores de poder em detrimento da natureza, dos trabalhadores (do campo e da cidade) e das populações tradicionais que habitam distintos territórios, em um nível consideravelmente maior ao dos últimos anos. O que se projeta é um quadro ainda mais preocupante de acirramento e radicalização social, envolvendo os múltiplos atores e interesses em relação ao capital, ao trabalho e à utilização dos recursos.
O elogio heroico do avanço da fronteira, silenciando o caráter predatório e irreversível das atividades de interesse do agrobusiness está aí, e o passado nos ensina. Seremos severamente impactados. Resta saber: que tipo de civilização queremos hoje e amanhã?
*Bruno Novelino Vittoretto é historiador e professor da UFVJM.
Edição: Rafaella Dotta