O Dia Mundial Sem Carro busca refletir sobre o uso excessivo de automóveis
Por Juliana Afonso*
Você sai de casa impecavelmente arrumado. Tira a chave do bolso e, com um clique, destrava a porta do seu carro. Está aberto um mundo de possibilidades. Você entra, coloca as mãos no volante e dirige pela cidade. Não tem trânsito, não tem buzina, não tem sinal. É apenas você e o seu carro, em alta velocidade. Você chega a uma estrada de terra como em um passe de mágica. Com o seu moderno sistema de rodas, você desliza pela lama em segurança, ao som de um rock estilo born-to-be-wild, como sempre sonhou.
Esse é o enredo de todas as propagandas de carro. Está aí um segmento que precisa dar uma atualizada, porque essas cenas, sinceramente, beiram ao ridículo. O que a publicidade quer é estimular o seu desejo de consumo, a gente sabe, mas o que elas têm criado é um cenário delirante. Em que cidade é possível se locomover sem se preocupar com os outros? Em que avenida você pode chegar a 120 quilômetros por hora? Existe algum tipo de relaxamento quando se está preso no meio de um engarrafamento?
Analisar as propagandas de automóveis é um ótimo exercício para perceber como o consumo de um carro está intimamente ligado a uma perspectiva individualista de cidade e de sociedade. Se tenho pressa, vou trafegar pela faixa de ônibus. Se preciso atender o telefone, vou parar na ciclovia. Nada importa quando estou no carro. E que atire a primeira pedra quem nunca buzinou para aquele motorista que “deu uma fechada”.
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Nos sentimos donos das ruas quando estamos nos nossos carros particulares. Mas ainda que o carro seja seu, vai aqui um lembrete: a rua não é. Ela é pública. Pedestres, ciclistas, skatistas, cadeirantes, carroceiros têm tanto direito à rua quanto qualquer carro. Ninguém discorda, mas poucos cumprem.
É normal (ainda que não seja natural) que os motoristas se achem a última bolacha do pacote. Historicamente, a cidade foi transformada para que eles tivessem vez. Perdemos parques e praças, tampamos rios, construímos viadutos, retiramos moradores tradicionais de suas casas, tudo para alargar as vias e fazer com que a propaganda do carro que se locomove às pressas se tornasse mais próxima do real. E aí, estamos nos locomovendo mais rápido?
A construção de ruas para tornar o trânsito mais ágil é uma falácia. Em 1964, o economista Anthony Downs já dizia que o aumento das vias não diminui os engarrafamentos, ao contrário, ele incentiva as pessoas a usarem seus automóveis. A teoria ficou conhecida como Lei Fundamental do Congestionamento. Belo Horizonte é um exemplo disso: em 1999, a frota da cidade era de 650 mil veículos e, hoje, ela é de cerca de 2,2 milhões, quase um carro por pessoa.
Mas se uma cidade com muitos carros é ruim para todo mundo, porque investimos tanto nesse modelo? A indústria automobilística é protagonista nessa história. Ela começa a chegar no Brasil, ainda na década de 1920, investindo fortunas para transformar o carro em um objeto de desejo e, assim, vender mais. É importante lembrar ainda que os automóveis eram caros e ter um veículo era uma forma de se diferenciar das pessoas mais pobres e poder acessar locais exclusivos.
Infelizmente, pouca coisa mudou. Ainda hoje, um transporte acessível e de qualidade, capaz de levar as pessoas para todos os lugares, parece incomodar a elite. Sim, a mesma elite que reclama que não podem ocupar prédios públicos abandonados, mas que ocupa todos os dias as vias públicas da cidade com seus carros privados. E atenção, isso não é uma apologia ao fim dos carros. Eles são importantes, mas não podem ser prioridade. Precisamos de políticas públicas de incentivo ao transporte coletivo e ativo para que as pessoas não necessitem dos automóveis. Assim como precisamos de uma política de moradia digna para que as pessoas não precisem morar em espaços precários.
No dia 22 de setembro é celebrado o Dia Mundial Sem Carro. A data busca promover uma reflexão sobre o uso excessivo do automóvel. É fundamental compreender que, para além do desejo, a necessidade de se locomover em um carro é fruto da exclusão sistemática das pessoas aos espaços. Não ter uma iluminação adequada exclui os pedestres da rua, não ter segurança no trânsito exclui os ciclistas da cidade, não ter uma tarifa de ônibus justa exclui as pessoas de inúmeras possibilidades, como trabalho, lazer, cultura, saúde, educação, serviços. Enfim, a vida.
*Juliana Afonso é jornalista e integrante do Tarifa Zero BH
Edição: Larissa Costa