Minas Gerais

Coluna

Liberdade: sentidos em disputa no Brasil contemporâneo

Imagem de perfil do Colunistaesd
A liberdade de todo e cada indivíduo só será possível se houver igualdade - Reprodução
Estamos em disputa pelos sentidos de uma palavra

*Por Alexandre Fernandez Vaz

Paulo Freire, cujo centenário se comemora neste triste 2021, escreveu um livro chamado Educação como prática de liberdade, publicado em 1967. Com tal título e respectivo conteúdo, o principal educador brasileiro inscrevia suas ideias na tradição iluminista, aquela que coloca em primeiro plano razão, autonomia, direitos universais, formação do sujeito.

Postava-se, portanto, ao lado daqueles que reconhecem o caráter histórico dos fenômenos sociais, que sabem que é possível um mundo melhor do que este que hoje habitamos.

Paulo Freire não desconhecia que a educação é movimento que em muito ajuda tal consecução, mas que ela sozinha não basta. É preciso que a sociedade como um todo se transforme e, nesse contexto, não é casual que a liberdade seja um ponto fundamental em todos os programas revolucionários modernos, sejam os burgueses, sejam aqueles que lhes fizeram a crítica e procuraram outra via, os socialistas e anarquistas.

É regressivo o entendimento segundo o qual liberdade significa que cada um possa arbitrariamente fazer o que quiser

Talvez uma das batalhas mais fatigantes que vivemos no campo da política hoje seja aquela pelas palavras e os sentidos que a elas atribuímos. Ela não é nova, mas a multiplicação de meios de difusão e o desacerto do avanço da tecnologia em relação a nossas capacidades de operar com ela de forma razoável – como um instrumento possível, não como um lugar para o qual a vida se desloca – torna tudo mais agudo. De todas as palavras em disputa, uma delas, dita à exaustão é, precisamente, liberdade.

No último feriado de 7 setembro, quando se comemorou o 199º aniversário da proclamação da independência, o Presidente da República, como de praxe, compareceu aos festejos. Desta vez, no entanto, não bastou a Jair Bolsonaro presenciar o desfile militar na capital federal. Ele preferiu deslocar-se até São Paulo para encontrar seus fanáticos seguidores, cujo intuito era apoiar a ruptura institucional. Antes disso, deu uma passada na manifestação congênere em Brasília, bem menos concorrida que a realizada da Avenida Paulista.

Em clima de campanha eleitoral, Bolsonaro gritou, insultou e defendeu a desobediência a determinações do Supremo Tribunal Federal (STF), atacando frontalmente o equilíbrio dos três Poderes, um dos pilares da República, e tentando desestruturar a pouca institucionalidade que temos, aquela que foi a duras penas conquistada e que nos dá a mínima garantia de que o Estado de Direito prevalecerá.

Não é possível defender a “liberdade” de atentar contra a liberdade

Uma semana depois, ao proferir o discurso de abertura na Assembleia Geral da ONU – posição que informalmente cabe ao Brasil desde 1947 –, o mandatário valorizou a manifestação realizada a seu favor, dizendo que foi a maior já acontecida no país (o que não é verdade), e que ela foi um palco para a defesa da democracia e das liberdades individuais.

Estamos em disputa pelos sentidos de uma palavra. Bolsonaro e seus seguidores se apresentam como os que lutam pela liberdade que se veria ameaçada pelo comunismo, governadores de estado, pela ditadura instaurada pelo STF. Cada qual à sua maneira, estariam a nos ludibriar, prevaricando para nos manter escravos de seus escusos interesses.

Para sermos livres devemos ter direito à liberdade de opinião, o que significa poder espalhar notícias falsas, já que, afinal, quem nunca contou uma mentira para a namorada?! Ao mesmo tempo, devemos cada um possuir uma arma, já que povo livre é povo armado, sem deixar de, se assim nos ocorrer, recusar a vacina contra a covid-19.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

É regressivo o entendimento segundo o qual liberdade significa que cada um possa arbitrariamente fazer o que quiser. Liberdade só faz sentido se ela se dá em dimensão social, ou seja, se todas as pessoas são, ao menos tendencialmente, livres. Se não for assim, trata-se da tirania de alguns sobre todo o restante, dos que podem pagar por milícias contra os que o Estado abandona ou mata nos campos, florestas e periferias das cidades.

O sentido da liberdade está não nos delírios coletivos contra inimigos imaginários, mas em outro lugar: na justiça social, no compromisso com o pacto civilizador, no exercício do pensamento e da fala, não do grito compulsivo.

No mesmo 1967 em que Educação como prática de liberdade veio a público, Theodor W. Adorno proferiu uma conferência para estudantes austríacos intitulada Aspectos do novo radicalismo de direita. Analisando a situação que lhe era atual, alertava, como já fizera em outras ocasiões, para a presença do potencial fascista no interior do regime democrático. O grande dialético tinha razão, afinal, como tolerar, em nome da liberdade de expressão, posições antidemocráticas?

Não é possível defender a “liberdade” de atentar contra a liberdade. Eis uma tarefa que a educação não pode renunciar, se for ela prática de liberdade: formar as novas gerações para a valorização e ampliação da esfera pública, para a democracia e para a construção da liberdade de todo e cada indivíduo, sem esquecer que isso só será possível se houver igualdade. Dito de outra forma, trafegar na direção oposta ao fascismo.

Quanto a isso, Adorno foi enfático ao afirmar que “como essas coisas andam, e como prosseguirão, isso é, em última instância, de nossa responsabilidade”. Levemos a sério tal alerta, ele valia há tantos, ele segue vigente hoje.

*Alexandre Fernandez Vaz é Doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Leibniz Universität Hannover, Alemanha. Professor dos programas de Pós-graduação em Educação e Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

 

Edição: Rafaella Dotta