Militares parecem gostar de fazer sofrer
Há duas formas de demonstrar desamor pelos filhos quando se trata de educação. A primeira é entregar totalmente a tarefa aos partidários de uma pedagogia autoritária, com carta branca para punir e retificar os jovens que se afastem do modelo. A segunda é retirar do aluno a possibilidade de conviver com a diferença, isolando-o numa ilha de valores familiares cercados de conservadorismo por todos os lados.
Quem ama não ameaça com castigos ou afasta o jovem da vida real. O bolsonarismo, que vem se afirmando pela falta de empatia em todas as áreas, encontrou na educação um terreno para afirmar seus valores mais profundos e, por isso, apresenta suas armas (a expressão não é casual) nos dois caminhos da ausência de afeto em termos familiares, pedagógicos e sociais.
Governo federal tem projeto de ódio como base pedagógica
De um lado, o governo vem defendendo o ensino civil-militar, fundado na disciplina e falta de diálogo, com direito a financiamento especial. O projeto foi oferecido aos estados e vem sendo disputado avidamente pelos governadores alinhados com o presidente, como o mineiro Romeu Zema. Em outra dimensão, a militarização já está dominando a burocracia do Ministério da Educação, com dezenas de profissionais sem preparo e experiência na área assumindo funções de comando na pasta.
Aqui a troca é de amor por disciplina coercitiva.
Exemplo antipedagógico
Recentemente, um episódio mostrou a que ponto pode chegar essa vertente. O Colégio Militar de Belo Horizonte foi denunciado por práticas de abuso, com alunos levados ao limite físico e emocional durante a preparação para receber um general qualquer em suas instalações. Muitos jovens foram parar na enfermaria, outros desmaiaram e sofreram ameaças psicológicas.
A prática, de acordo com o histórico da instituição, não é novidade. O diretor, segundo as denúncias, queria mostrar serviço com a performance de seus pupilos marchando e manobrando armas, para conquistar sua promoção ao generalato.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
O mais grave é que, segundo carta divulgada por um grupo de pais, a atitude foi considerada correta e até elogiada por eles. Quem manda os filhos para uma escola militar sabe o que espera: disciplina acima de tudo, autoritarismo acima de todos. Uma espécie de terceirização da violência contra os próprios filhos, com traços inegáveis de sadismo e menosprezo da própria capacidade de educar suas crias.
O curioso é que muitos desses pais foram alunos da mesma escola, o que mostra a eficiência do modelo de transmissão e subserviência, com traços de vingança inconsciente pelo próprio sofrimento. Militares, por suas práticas regressivas e autoritárias, parecem gostar de fazer sofrer. O que não se esperava é que desenvolvessem a capacidade de gozar com o sofrimento próprio e dos seus. Algo que extrapola o fanatismo para adentrar no terreno da perversidade.
Fora do mundo
Dando continuidade ao projeto de ódio como base pedagógica, o governo federal elencou entre as prioridades encaminhadas ao Congresso o projeto de educação doméstica, ou homeschooling, ao lado de reformas no campo econômico e político. É a única das chamadas pautas dos costumes a ocupar lugar de destaque no pacote bolsonarista, sendo colocada lado a lado com a reforma tributária, a privatização e a mineração em terras indígenas, por exemplo.
Nesse território, se barganha afeto por isolamento e solidão.
Sai o militarismo e entram os evangélicos e olavistas. Nada é mais importante para os patrocinadores do atual ministro Milton Ribeiro que o homeschooling de inspiração norte-americana. O ensino doméstico é a saída para dois dos maiores fantasmas da ultradireita: a ciência e a política. Para completar, o ensino em casa ataca ainda o moralismo traduzido no fake-conceito de ideologia de gênero.
Se pretende extirpar a convivência com a diversidade
Assim como a educação militar é uma falácia restrita em sua abrangência – já que o modelo não é reproduzível em larga escala e por isso é sempre objeto de programas-piloto – o homeschooling não chega a atingir 1% dos estudantes do ensino básico. De acordo com dados do próprio MEC, a regulamentação alcançaria cerca de 35 mil estudantes de um universo de 47 milhões.
A ideia de legalizar a modalidade, objeto de desejo de evangélicos, bolsonaristas e conservadores – ou um coquetel desses três desvarios – não é apenas ilegal, mas perigosa para o desenvolvimento cognitivo e social pleno dos jovens. Sem falar no risco, potencialmente ampliado, de violências e assédios não denunciados.
Mais que limitar o avanço do chamado marxismo cultural, do ateísmo ou da licenciosidade sexual, como vociferam os profetas do apocalipse pedagógico, o que se pretende é extirpar a dimensão social da aprendizagem e a convivência com a diversidade. O próprio ministro, em outro contexto, já disse que alunos com deficiência atrapalham. A base, como se vê, é uma só.
Para preservar os chamados valores ocidentais, familiares e cristãos – sabe-se lá o que isso significa -, o caminho é isolar os jovens em casa e em ambientes preservados da diversidade, como igrejas, por exemplo.
É bom lembrar que, mesmo ilegal nos termos da legislação atual, o STF já se manifestou sobre o tema, afirmando que o ensino em casa não é inconstitucional. O que encaminha a discussão para a Suprema Corte, que está na bica de ganhar um novo ministro “terrivelmente evangélico”.
Bolsonaro desmoraliza o tribunal, que será exposto a um debate canalha a partir da deturpação do conceito de liberdade e do papel dos pais na educação dos filhos. Além de acenar para sua base de apoio com a migração dos argumentos da Constituição Federal para a Bíblia, como já demonstrou por mais de uma vez seu candidato a ministro André Mendonça.
O homeschooling não é um projeto de mamãe e papai, mas de ideólogos da ultradireita, com o dedo de gente como Steve Bannon, entre outros. Recentemente, o guru de Trump e Bolsonaro fez questão de desenhar sua estupidez em torno do tema: o ensino em casa é também uma ferramenta contra a ditadura do uso de máscaras em tempos de covid-19. Não basta negar a ciência, é preciso operar contra ela.
Pais que querem escolas militares para os filhos, com direito à tortura consentida, ou que preferem afastar os filhos do convívio com a sociedade para melhor doutriná-los em casa, não amam os filhos que puseram no mundo. Além de desvalidos de afeto, estão criando uma geração de jovens dóceis para o negacionismo, o autoritarismo, o consumismo, a violência e o preconceito. O bolsonarismo, como se vê, faz escola.
Edição: Elis Almeida