A produção não produz, pois, unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de consumo
A Constituição Federal de 1988 tem como um dos seus princípios basilares o respeito à dignidade humana. Segundo a mística e espiritualidade bíblica, o ser humano é “imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,26) e nosso corpo é “templo do Espírito Santo” (1 Coríntios 6,19), segundo o apóstolo Paulo. Ou seja, toda pessoa é sagrada, portadora de uma dignidade infinita que precisa ser respeitada e valorizada.
No entanto, temos que perguntar: em uma sociedade capitalista, o ser humano é reduzido à máquina e à mercadoria e as mercadorias são fetichizadas e reificadas? Para respondermos a estas perguntas precisamos analisar o mais profundo das relações sociais e não acreditar na ideologia dominante, que sempre cumpre o papel de oprimir e explorar.
A esquerda, na prática, muitas vezes vê somente o negativo
Ajuda a compreender os processos de fetichização e de reificação a análise que Karl Marx tece sobre a relação íntima existente entre produção e consumo, que afirma: produção é consumo também. “A produção é também imediatamente consumo. Consumo duplo, subjetivo e objetivo. [Primeiro]: o indivíduo, que ao produzir desenvolve suas faculdades, também as gasta, as consome, no ato da produção, exatamente como a reprodução natural é um consumo de forças vitais”.
E continua: “Segundo: produzir é consumir os meios de produção utilizados, e gastos, parte dos quais (como na combustão, por exemplo) dissolve-se de novo nos elementos universais. Também se consome a matéria-prima, a qual não conserva sua figura e constituição naturais, esta ao contrário é consumida. O próprio ato de produção é, pois, em todos os seus momentos, também ato de consumo”, escreve Marx no livro “Para a crítica da Economia Política, Do Capital, O Rendimento e suas fontes” ¹.
Não se considera mais o valor de uso de uma mercadoria, mas o dinheiro
O consumo é também imediatamente produção. Ao consumir o alimento, a pessoa humana se produz. A produção é imediatamente o seu contrário: o consumo, e vice-versa. A produção é também mediadora para o consumo e vice-versa. “Sem a necessidade não há produção. Mas o consumo reproduz a necessidade”, afirma Karl Marx no mesmo livro.
“A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, que se come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes. A produção não produz, pois, unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, não só objetiva, como subjetivamente. Logo, a produção cria o consumidor. [...] A produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”, completa o escritor.
Theodor Adorno critica o abandono da dialética pela esquerda que, na prática, muitas vezes vê somente o negativo. Vê apenas o que lhe interessa e, vítima do racionalismo e do pragmatismo, acaba com o movimento dialético e engessa a história. Para Adorno, acima de tudo, “dialética significa intransigência contra toda e qualquer reificação” ².
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Uma mercadoria pode ser algo material ou imaterial, que satisfaz necessidades humanas e que é veículo de valor. Por exemplo, vários serviços que, ao serem vendidos como mercadorias, revelam valor. “O ser humano não é em si uma mercadoria: torna-se uma mercadoria quando da sua inserção nas relações capitalistas de produção”, escreve o escritor brasileiro Mauro Luis em “Ensaios sobre consciência e emancipação” ³.
Assim, em última instância, no capitalismo, a mercadoria produz quem a produz: um ser ‘humano’ domesticado reduzido a mera peça da engrenagem do sistema do capital e consumidor contumaz, quando pode. “Como proletário assalariado, os seres humanos estão produzindo mais que alimento, utensílios, roupas ou sapatos; estão produzindo história, estão produzindo os diferentes seres particulares que compõem o gênero humano”, diz Iasi.
Importante observar o que diz a esse respeito Ruy Fausto: “A noção de encantamento como de desencantamento tem na realidade um duplo sentido, que Weber não parece ter bem destrinchado. Por um lado, ‘desencantamento’ remete a um mundo a-qualitativo, no qual desaparecem as diferenças de qualidade. Por outro, ele remete a um mundo de inércia, no qual os objetos inertes predominam, em detrimento dos objetos ‘vivos’. Ora, o que caracteriza o capitalismo é o fato de que nele se tem um desencantamento no primeiro sentido, mas não no segundo” 4.
Nas relações de produção e de comercialização, a função universal de equivalente se fixa em uma mercadoria na forma de dinheiro. Não se considera mais o valor de uso de uma mercadoria, mas o dinheiro, na sociedade capitalista, adquire a função universal de equivalente. A forma dinheiro é o ponto de chegada do processo de aparição das mercadorias, mas esse movimento de aparição é também um movimento de ocultação. A essência das mercadorias é ocultada, porque aparece através do dinheiro. Assim, o dinheiro tem um caráter ofuscante também, porque introduz a ilusão e o fetichismo.
É o que explica Ruy Fausto: “Na medida em que na forma dinheiro se fixa numa mercadoria adequada à função universal de equivalente, nela se reúnem de um modo não só objetivado, mas estável as duas funções do equivalente: a de ser não-valor-de-uso e a de ser espelho de valor. O valor de uso material da mercadoria é ‘suprimido’ em benefício de um valor de uso formal: a mercadoria dinheiro é ‘não’ valor de uso (portanto imediatamente trocável), e ao mesmo tempo ou por isso mesmo ela é espelho de valor”.
“O fetichismo é a naturalização do objeto, a negação de que sua gênese está em última instância (isto é como pressuposição) na prática dos agentes”. Para expressar o valor de uma mercadoria, o dinheiro deve ser ao mesmo tempo valor e mercadoria, embora mercadoria negada em dinheiro. O papel-moeda é a encarnação de uma função do dinheiro e tem valor porque circula.
Para se demonstrar a coisificação e a alienação – estranhamento – do trabalhador no processo de produção capitalista, Marx diz que “Potter, porta-voz dos fabricantes, distingue duas espécies de máquinas, ambas pertencentes ao capitalista; uma jamais deixa a fábrica, outra passa as noites e os domingos nos casebres da vizinhança. A primeira é morta, a segunda é viva” 5.
Uma diferença entre a(o) trabalhadora(or) reduzida(o) a máquina e a máquina produzida pelo trabalhador é que a máquina se desgasta e exige melhoramento constante, enquanto a(o) trabalhadora(or), pelo exercício do trabalho, se aprimora e acontece uma acumulação de aprimoramento de habilidades nas gerações sucessivas.
Enfim, pela análise feita, concluímos que, em uma sociedade capitalista, que é máquina de moer vidas, o ser humano é reduzido à máquina e à mercadoria e as mercadorias são fetichizadas e reificadas. Assim, o que precisa ser enfrentado e superado no Brasil é o capitalismo que, por meio da mercantilização da vida, pelo agronegócio, pela privatização das empresas, da terra e das águas – bens comuns -, com um Estado subserviente aos interesses do grande capital, segue com ideologia dominante que insufla cotidianamente o individualismo, o egocentrismo, a concorrência e a competição, como se fossem valores, mas são, na prática, vírus que solapam a convivência social e vão triturando e moendo a dignidade da pessoa humana.
Referências
1 MARX, Karl. Karl Marx: para a crítica da Economia Política, Do Capital, O Rendimento e suas fontes. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2005.
2 ADORNO, Theodor Wiesengrund. Crítica cultural e sociedade. In: COHN, G. Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986.
3 IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
4 FAUSTO, Ruy. Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circulação simples. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Brasiliense, 1997.
5 O Capital. Edição resumida. 7ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
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**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Rafaella Dotta