No último mês, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) em Minas Gerais elegeu sua nova direção. O grupo eleito para presidir a sigla pelos próximos dois anos, intitulado “Psol de todas as lutas”, é composto por forças como os mandatos das vereadoras Iza Lourença e Bella Gonçalves, em Belo Horizonte, Tallia Sobral, em Juiz de Fora, a deputada estadual Andréia de Jesus e a deputada federal Áurea Carolina.
Somos um país que vive ainda sob o jugo e a tutela de interesses internacionais
O Brasil de Fato MG conversou com o novo presidente eleito do Psol-MG, o advogado e educador popular Cacau Pereira. Na conversa, Cacau aborda os principais desafios da esquerda brasileira e elenca como prioridades para o próximo período o enfrentamento aos governos Zema e Bolsonaro, a unidade da esquerda e o fortalecimento das mobilizações de rua.
Brasil de Fato MG – Na tese “Fazer do Psol uma semente de um novo projeto para a esquerda brasileira”, que você assina com outras pessoas, fala-se, logo no início, de lutas de resistência em diferentes países do mundo. Qual o impacto dessas lutas no Brasil? Você vê essa resistência aqui também?
Cacau Pereira – Estamos saindo, no plano internacional, de um período de hegemonia de forças conservadoras da extrema direita, que foi muito danoso para os povos do mundo e teve no governo Trump sua maior expressão. Esse movimento proporcionou, aqui no Brasil, o avanço das ideias bolsonaristas e a vitória e Jair Bolsonaro.
O fato de que esses governos de extrema direita estejam sendo superados em várias partes do mundo é um alento importante, com reflexos na América Latina em várias lutas, de povos originários, indígenas, na Constituinte do Chile, nos movimentos de mulheres que levantaram bandeiras como a descriminalização do aborto.
A prioridade do Psol é a construção da unidade pelo “Fora, Bolsonaro”
O Brasil é, lamentavelmente, neste momento, um vagão mais atrás, puxado por essa locomotiva de outros países, mas também com alguns reflexos. Neste ano, a Coalizão Negra cumpriu um papel importante, ao levantar, no 13 de maio, a questão do encarceramento, da repressão, do assassinato da juventude negra. Foram atos que tiveram uma importância grande. Os próprios atos da Campanha Fora Bolsonaro retiraram a hegemonia da direita das ruas e colocaram a esquerda, em particular, em um novo patamar de luta política. Isso ainda não foi suficiente para a derrubada do presidente, mas temos o ato do dia 2 e esperamos seguir nas ruas. E a inspiração dos movimentos internacionais está muito presente.
Aliás, isso é um processo que já vem de alguns anos. A Primavera Árabe e outros movimentos foram muito inspiradores dessa renovação, da presença da juventude, dos territórios, ocupando uma vaga que o sindicalismo ocupou décadas atrás e que, neste momento, está um pouco mais atrás em suas mobilizações. Eu acho que é possível estabelecer algum paralelo, mas nós temos que avançar no Brasil para chegar ao patamar de países como o Chile, onde estão derrotando o entulho autoritário da ditadura do Pinochet. Uma situação que era muito defensiva muda para algumas vitórias para a classe trabalhadora e para os setores populares.
A tese também defende um programa anti-imperialista. O que isso significa nos dias atuais?
Temos um domínio mundial de grandes empresas transnacionais que controlam a economia e as estruturas de governo. Na verdade, os Estados nacionais, embora como forma organizativa, administrativa, tenham uma grande importância, como preponderância econômica, estão em questionamento. É óbvio que temos a hegemonia dos Estados Unidos e da China no plano internacional, na economia, mas são economias que têm grandes gigantes econômicos e financeiros à frente. Aliás, agora, precisamos acompanhar a situação da China, com a Evergrande, que pode apontar na direção de uma nova grande crise econômica.
O anti-imperialismo é uma necessidade. Somos um país que vive ainda sob o jugo e a tutela de interesses internacionais. Na economia internacional, o que está reservado ao Brasil é ser um país exportador de commodities, um país que não consegue recuperar os patamares de produção industrial de outros momentos, um país que vive a destruição de seu parque produtivo nacional, a desnacionalização de algumas áreas. Todos esses elementos colocam a luta anti-imperialista na ordem do dia.
A luta contra o governo Zema está no centro da nossa agenda
Para além disso, o governo dos Estados Unidos continua sendo uma potência econômica, militar e política que influencia os rumos de várias nações. Cuba, por exemplos, resiste a um bloqueio econômico, há décadas, que é liderado pelos Estados Unidos, em que pese a oposição de outros países, inclusive capitalistas, que veem em Cuba uma oportunidade de negócios. O governo estadunidense segue com essa sanha do estrangulamento econômico de Cuba.
Então, o anti-imperialismo segue fundamental para uma nação como o Brasil, de economia periférica, que busca ocupar um espaço na arena internacional. Eu diria mais: os últimos movimentos políticos no Brasil, como a Lava Jato, estiveram fortemente influenciados por interesses de nações econômicas mais desenvolvidas, que encontraram nesses mecanismos judiciais formas de evitar o desenvolvimento do Brasil em determinadas áreas.
Qual é a prioridade do Psol para os próximos anos em Minas Gerais?
Nós estamos completando agora as etapas municipais, estaduais e nacional do nosso congresso. Vamos, a partir das resoluções que foram tomadas no 7º Congresso do Psol, iniciar a aplicação dessas resoluções no plano estadual. Eu destacaria duas decisões importantíssimas.
A primeira delas é a construção da unidade pelo “Fora, Bolsonaro” e contra todas as variantes de governos de direita. Logicamente, o governo Bolsonaro tem uma característica própria, pela sua índole neofascista, pelo seu comportamento contra as liberdades democráticas, os direitos da população. É um espectro de ameaça às liberdades democráticas e à democracia no Brasil.
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Mas nós temos aqui em Minas Gerais o governo Zema, que se elegeu na onda do bolsonarismo e traz uma agenda neoliberal, extremamente perniciosa para o nosso estado. Um governo que capitula, que está ligado aos grandes interesses de corporações econômicas, mineradoras e outros segmentos. Um governo que pretende fazer uma privatização em larguíssima escala de empresas públicas que temos em nosso estado, extremamente antidemocrático e autoritário. A luta contra esse governo está no centro da nossa agenda.
Um segundo aspecto importante é um tema bastante discutido no Congresso do Psol: a rearticulação e unidade da esquerda. Nós caminhamos separados em um largo período, particularmente nos governos do PT. Mas não tivemos dúvidas, no momento em que o golpe de 2016 se colocou, o impeachment de Dilma foi colocado no cenário, nos posicionamos do lado certo da história, contra os golpistas, os que deram esse golpe com o intuito de uma retomada rígida das políticas neoliberais no Brasil.
A luta contra o governo Zema está no centro da nossa agenda
Neste momento, a unidade da esquerda é muito importante. Sem essa unidade, vai ser muito difícil derrotar Bolsonaro e Zema nas ruas e nas urnas. Nós temos que, logicamente, construir as condições políticas para isso, não pode ser uma via de mão única. Então, a unidade das esquerdas é um elemento muito importante, que foi demarcada no Congresso do Psol.
Tão logo tomemos posse, devemos estabelecer uma agenda de reuniões e conversas com os partidos de esquerda aqui em Minas Gerais, com vistas a iniciar esse processo, com a expectativa de que isso possa se desdobrar em seminários e encontros programáticos, para que possamos superar a herança do tucanato, a herança do partido Novo. E que possamos avançar em governos que tenham uma vocação popular, de atendimento aos pobres, com outra visão social. Não em governos para os ricos, para as mineradoras, para a burguesia do Estado, mas para a população pobre, para o nosso interior, para os que mais precisam de políticas públicas.
No âmbito parlamentar, o Psol já tem convergido com outros partidos de esquerda. Vocês vislumbram a possibilidade de campanhas unitárias para presidente e governador no ano que vem?
Esse é o processo de diálogo que pretendemos abrir e, logicamente, depende de chegarmos a acordos programáticos, que são fundamentais.
Outro aspecto fundamental é a composição das frentes. Nossa opinião é que as frentes devem ser de esquerda, com partidos vinculados ao campo popular. Acreditamos que as experiências de frentes mais amplas desandaram na situação atual.
Nossa opinião é que as frentes devem ser de esquerda, com partidos do campo popular
A governabilidade não estará ancorada em forças de centro, de direita, mas na mobilização popular, com a população defendendo seus interesses e o governo se utilizando dessa correlação de forças para aplicar essas políticas. Tem que ser uma construção democrática, com diálogo, debate, que não haja hegemonismo.
Com base nessas três condições, acredito que isso seja possível. Esse foi o desejo da maioria dos delegados do Psol em seu 7º Congresso. Esperamos que haja reciprocidade da parte das outras forças, ou seja, do PT, PCdoB, Unidade Popular, PCB, PSTU e outras organizações socialistas, com as quais guardamos maior unidade como um campo da classe trabalhadora.
Você fez uma avaliação do governo Zema. E como avalia o governo Kalil em Belo Horizonte, cidade onde o Psol tem uma atuação muito significativa?
Kalil surge como uma novidade política, consegue a reeleição com bastante brilho porque aparece como um elemento por fora da política tradicional. Porém, sabemos os meandros da política brasileira. É muito difícil que um político abrigado no PSD possa apresentar alguma novidade em termos de política nacional.
Nós tivemos acordos pontuais em alguns enfrentamentos que o Kalil teve que fazer, particularmente as pressões pela abertura precoce da economia, das escolas e de outros segmentos durante a pandemia. Mas seguimos tendo diferenças importantes.
A resistência à aprovação do projeto de renda mínima foi muito grande, foi necessária muita pressão, numa ação articulada pelas bancadas populares, especialmente das nossas vereadoras Iza Lourença, da Bella Gonçalves e da co-vereadora Cida Falabela. Tivemos, agora, a aprovação em segundo turno da extinção da BHTrans, em um processo feito a toque de caixa, com muita rapidez e pouco debate com a sociedade e com os trabalhadores da BHTrans, um processo que deve ampliar a terceirização numa área sensível, que é a mobilidade aqui em Belo Horizonte.
Não faremos oposição leviana a Kalil, mas a frente que queremos construir não o comportaria
Todas essas diferenças nos colocam em um campo que não é o mesmo do Kalil. Então, do ponto de vista mais estratégico, a frente de esquerda que propomos se contrapõe programaticamente ao governo Zema, no plano estadual, e ao governo Kalil, no plano municipal.
Porém, fazemos uma diferenciação, pois a pandemia no Brasil colocou em lados distintos a civilização contra a barbárie. Então, nós não vamos fazer oposição leviana, que não reconhece que houve enfrentamentos. E, nesse caso, reconhecemos que houve da parte de Kalil essa postura.
Por outro lado, segue sendo um governo com uma vertente autoritária, com pouco diálogo com os sindicatos. São elementos que nos colocam em outra trincheira, ainda que façamos uma crítica diferenciada a um e outro governo, pela sua composição e por suas posturas. Mas a frente que queremos construir não comportaria o Kalil como parte dela.
Que caminho você vislumbra para que possamos vencer o projeto neoliberal?
Em primeiro lugar, precisamos olhar para trás e ver que tivemos oportunidades de ter uma construção diferente à frente do aparelho do Estado e em que medida foram cometidos erros que não possibilitaram criar uma agenda distinta. Eu falo especialmente sobre os governos federais do PT, que estiveram por 13 anos à frente do aparato estatal e não conseguiram buscar sua sustentação nas maiorias sociais empobrecidas, desempregadas, com salários muito baixos.
Outro aspecto é olhar em volta, para as lutas de resistência que estão acontecendo na América Latina. Nós precisamos que os movimentos sociais se coloquem com altivez à tamanho desses desafios. Nós tivemos, até por força do período anterior, uma crença de que pela via negocial poderíamos resolver boa parte das coisas. O que está demonstrado é que só a luta direta pode fazer isso.
É fundamental uma esquerda que reafirme sua independência de classe, que atue na arena institucional, mas tenha na luta de massas o seu centro
Os movimentos populares que estão se afirmando têm na mobilização social o centro de sua atividade. Logicamente, se utilizam da pressão institucional, dos instrumentos jurídicos à mão para fortalecer essa luta.
Além disso, é preciso construir uma agenda de diálogo da esquerda latino-americana que busque absorver as experiências e soldar uma solidariedade internacional. O Brasil, pela sua pujança econômica, seu tamanho e sua importância, muitas vezes, tem um comportamento que eu diria “sub-imperialista” em relação ao restante do continente. Eu acho muito ruim esse tipo de postura, em particular para a esquerda brasileira. Temos muito o que aprender com nossos irmãos da América Latina.
É fundamental uma esquerda que reafirme sua independência de classe, que atue na arena institucional, mas tenha na luta de massas o seu centro, que confie na força dos trabalhadores, dos setores proletarizados, dos movimentos populares e que possa articular esses movimentos numa perspectiva de transformação social.
Nós não podemos abaixar nossas bandeiras e tratar dos debates sobre o socialismo só nas nossas reuniões internas, em dias de festa. A humanidade está passando por uma situação muito difícil: a catástrofe da covid-19, as catástrofes ambientais, os problemas que envolvem os refugiados, as populações errantes no mundo, são elementos de uma barbárie da qual não há saídas nos marcos do sistema capitalista. Então, a superação dessa ordem social é fundamental. A esquerda deve ter a coragem de ter respostas para as questões imediatas, mais sentidas, mais prementes das classes trabalhadoras, mas deve ter também a dimensão estratégica, política, teórica, de construção de um novo modelo de sociedade.
Acredito que o Psol é parte das experiências de uma esquerda de novo tipo, que vem ganhando peso em várias partes do mundo. Espero que, sob a nova direção aqui em Minas Gerais, possamos sintonizar o nosso estado com os avanços do Psol no resto do país.
Por fim, eu gostaria de colocar a nova direção do Psol Minas Gerais a serviço de todos os movimentos populares, como um espaço dos lutadores, de todos os que querem a construção de uma sociedade igualitária, de todos os que sentem na pele a opressão, a fome, a miséria. A nossa expectativa é, assumindo o partido aqui em Minas, que ele seja um partido útil para as lutas sociais, a melhoria da qualidade de vida da população e que possam ajudar a derrotar as distintas matrizes da política neoliberal no estado.
Edição: Larissa Costa