Luciano Mendes nos presenteia com mais uma bela obra reunindo, sob um mesmo guarda-chuva, ou guarda-sol, contos que retratam a vida corriqueira de gente simples, de gente trabalhadora, de gente sonhadora – das nossas gentes –, permanentemente submetidas a processos diversos de exploração e dominação.
O tom do historiador crítico se revela desde o título “Homens de Bem” (Editora EIS, 2021), expressão usada para narrar situações, muitas delas familiares, de “homens de bens”, sejam econômicos, eclesiais ou policialescos. A expressão é adotada, portanto, para nos contar “pequenas” histórias que satirizam relações de poder, de micropoderes ou, mais propriamente, desnudam certas figuras que se veem como donas desses poderes, autorizando-se a usá-los ao seu bel-prazer.
Brincando com as palavras, Luciano mostra com maestria que as “pequenas” histórias, sempre marcadas por ambiguidades, não podem ser esquecidas pela sociedade e desconsideradas pelos pesquisadores das áreas humanas e sociais, remetendo-nos à noção de Peter Burke sobre a função do historiador. Luciano mostra também que as “pequenas” histórias, ainda que pareçam pitorescas, podem ajudar a compreender mudanças (ou permanências) de longa duração nas nossas formações sociais, políticas e culturais, relembrando-nos Norbert Elias.
Ao explicitar, com a força crítica que a reflexividade histórica e a sensibilidade literária permitem, conexões moralistas e moralizantes entre situações longínquas e jogos atuais de hipocrisia, política e religiosa sobretudo, Luciano desnaturaliza práticas de senso comum. Desvelar essas práticas, muitas delas traduzidas em crenças (que podem se tornar fundamentalistas), leva-nos a perceber intenções perversas e monstruosidades, caracterizadas no “sorriso descomunal, nervoso, patético, grotesco, macabro” de autoridades; de autoridades que aterrorizam fazendo com que, ao acordar, se deseje desviver.
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A perspicácia de Luciano também envolve “pequenas” histórias de pessoas capturadas, nunca ao acaso, em razão de fragilidades emocionais ou falta de perspectiva, de emoções feridas ou afetividades destruídas, de problemas de saúde ou dependência química. O autor chama a atenção ainda para a aleatoriedade dos encontros, para os tortuosos caminhos que marcam nossas trajetórias, movidas, muitas vezes, por verdadeiras sinas sociais.
O fantasma chamado comunismo ronda a vida de cidadãos comuns, até mesmo daqueles isolados em certos recantos. O terror ideológico mostra muito bem a farsa montada por poderosos, de distintos níveis sociais e hierárquicos, para realizar interesses pessoais e de grupos no plano político e econômico. Sob as asas de regimes autoritários, protegidos pela censura, são colocadas em ação astúcias e artimanhas de difamação e desmoralização individual e política.
Em tempos em que o poder arbitrário, geralmente travestido de patriótico, é legitimado por meio de determinações legais, promove-se o desprezo pela verdade e a ameaça aos mais vulneráveis. À revelia dos princípios fundantes da justiça, como a igualdade de gênero por exemplo – uma vez que “a decisão final é sempre do varão”, projetos de destruição da honra, orquestrados por fazendeiros, padres e outras autoridades, logram êxito.
Luciano evidencia também a ambiguidade das dimensões acobertadas pela máxima “bandido bom é bandido morto”, dando destaque à subserviência dos patrióticos “soldados do exército brasileiro”, sempre prontos a executar ordens e a manter o anonimato dos mandantes. Ao explicitar a hipocrisia que está por detrás da generosidade de certos homens de bem (ou de bens), Luciano desnuda a condição a que estão submetidos aqueles que servem, sem questionar, aos poderosos, assim como o preço a ser pago para assegurar sua confiança, tornando-se reféns de suas próprias tocaias.
Mas nossas gentes podem ser ousadas, a ponto de buscar alternativas radicais para garantir sobrevivência suficiente e abastada para si e para os seus. Quando o objetivo é fugir dessa “vida de cão sem dono”, pode-se até mesmo negociar com o demo, vender-lhe a alma e arcar com a danação e o fogo do inferno. Para viabilizar essas negociatas são exigidos requisitos preparatórios, como ter lido a Bíblia por exemplo, o que poderá levar à posição de pastor ou mesmo de empresário.
Luciano nos mostra também que as nossas gentes, apesar dos complexos processos de dominação a que são submetidas, podem ser perspicazes. Esse é o caso do sonhador Zé Da Lua, que sonhando um sonho acordado, se revela hábil em afrontar e ridicularizar o ceticismo dos que confundem sonho com loucura ou loucura com sonho e estão sujeitos, graças à ingenuidade, a se deixarem levar por ambos.
Enfim, a obra de Luciano Mendes é um convite à apreciação crítica de “pequenas” histórias, histórias de gentes que não podem mais continuar sendo ignoradas pelos historiadores, nem pelos sociólogos. Essas gentes pensam, mesmo não conseguindo recorrer a alternativas coletivas para explicitar sua indignação e fazer frente a humilhações que teimam em se cristalizar. No fundo, nossas gentes sabem que a submissão cega mata o corpo, o espírito, as expectativas, os sonhos, mas, sobretudo, a condição humana, ainda que se vejam como insignificantes e imprescindíveis, exceto talvez para os próprios pais, para quem “cada filho e cada filha é único e única”.
Ione Ribeiro Valle é doutora em Ciências da Educação pela Université René Descartes - Paris V Sorbonne e professora do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Serviço:
Título: Homens de bem
Autor: Luciano Mendes
Editora: EIS Editora
Número de páginas: 144
Compra: www.eiseditora.com.br
Edição: Larissa Costa