Minas Gerais

BÍBLIA

Artigo | Padres comunistas

Melhor ser acusado de comunista do que ser, de fato, alienado, omisso, em má consciência com a fé que professo

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Sérgio Antônio Görgen é frei franciscano e militante do MPA - MPA

Nos idos dos anos 1980 do século passado, fui muitas vezes achacado com a consigna “padre comunista”.

Mais recentemente fui batizado de “frei melancia”. Diz que é “ecologista”, mas é mesmo “comunista”, verde por fora, vermelho por dentro. 

Nos mesmos idos de 1980, recebi duas cartas ameaçadoras do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Ameaçavam me esfolar e até me eliminar caso não me convertesse ao que achavam ser o “verdadeiro” cristianismo. Nunca me tiraram um único minuto de sono. 

Continuarei frade socialista e seguidor de Jesus de Nazaré, o Cristo Crucificado e Ressuscitado

Não pensei que este besteirol um dia voltasse. Pois não é que voltou? Qualquer frase solta que fale em libertação, defesa de direitos, antifascismo, sociedade solidária, já vem a pecha: padre comunista.

Embora vivendo a vocação de simples frade, consagrado e não ordenado, pelo fato de estar há muitos anos com os sem-terra, os camponeses, os pequenos agricultores, os indígenas, os quilombolas, os pescadores, defendendo suas causas e lutando por distribuição de terras e rendas, estou no rol dos ditos cujos e, inclusive, me promovem a padre.

Nem hoje me tiram o sono. Sei a fé que abracei.

Mas me imaginei num tribunal inquisidor formado por católicos tradicionais, rançosos e raivosos, enfeitiçados pelo bolsonarismo, convencidos até à medula da autenticidade pura e única de sua religião medieval, pintada de nova com as modernas redes sociais. 

Para evitar ser crucificado com essa acusação no tribunal das novas mídias pensei numa fortificada linha de defesa. Vou me ancorar na Bíblia. 

Aí comecei a perceber que minha defesa tem vários furos e fiquei com medo de ser, mesmo com tão poderosa defesa, condenado. 

Então resolvi tomar uma providencial providência. Vou rasgar da Bíblia os textos que podem me condenar. 

Comecei rasgando os quatro primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos. Aquelas partes que dizem que “os cristãos tinham tudo em comum e não havia necessitados entre eles” e que “vendiam os seus bens e colocavam o valor aos pés dos apóstolos” para repartir com os necessitados, poderiam me condenar. E ainda o apóstolo Pedro dizendo que “Deus não faz distinção de pessoas”… Nossa! Comunismo puro. 

Depois arranquei a Carta de Tiago inteira. Aquela mania de São Tiago em dizer que “a fé sem obras é morta”, que “ricos, vossa riqueza apodreceu” e que “os gritos dos ceifadores de quem vocês tiraram o salário chegaram aos ouvidos de Deus”. Preocupante. Inútil para minha defesa. 

Depois comecei a dar uma repassada nos Evangelhos. Fiquei preocupadíssimo com o Cântico de Maria, no Evangelho de Lucas. Nossa Senhora rezando que Deus “vai derrubar os poderosos de seus tronos e exaltar os humildes, saciar os famintos e despedir os ricos de mãos vazias”. Pelamor de Deus. Rasguei na hora. 

Além de me condenar, poderia atrapalhar muitos inescrupulosos que usam as devoções marianas do povo simples para ajuntar dinheiro e falar mal do Papa Francisco e da Igreja comprometida com os pobres, em nome de Nossa Senhora. 

Rasguei também a parábola do rico comilão e do pobre Lázaro. Rasguei e queimei, para não deixar vestígios, a passagem dos trabalhadores desempregados na praça que receberam o mesmo valor dos contratados mais cedo, pois podem interpretar “de cada um conforme sua capacidade e a cada um conforme sua necessidade”. 

Também rasgue aquelas páginas em que Jesus distribui pães e peixes às multidões famintas, eliminei todas onde Ele convida doentes, coxos, mendigos, pobres, abandonados para o banquete do Reino para o qual os “bem de vida”, convidados, recusaram. Destruí várias em que Jesus diz “vai, vende o que tens, dá aos pobres e depois vem e segue-me”, aquelas do camelo passando pelo buraco da agulha antes de ricaços aceitarem o Reino de Deus… Credo. Comunismo puro na mente desta gente cega de ódio.

Arranquei também o Pai Nosso. Vai que atentem que o Mestre ensinou a orar pela vinda do Reino e pelo cumprimento de Sua vontade “assim na terra como no céu”. Essa coisa do Reino na terra, aqui neste mundo, não, não, não. “O meu Reino não é deste mundo” é a interpretação correta. Reino também neste mundo, é Teologia da Libertação. E Teologia da Libertação é comunismo. 

E depois aquela parte de pedir “o pão nosso de cada dia”, nem pensar. Comida para todos é coisa de comunista. Para evitar problemas, rasguei. 

A expulsão dos vendilhões do templo, eliminei dos quatro Evangelhos. Credo. Uma da poucas vezes que o Mestre enraiveceu foi quando viu comércio com a fé do povo. Risco grande de Ele também ser classificado como comunista. Proibir arrancar dinheiro do povo em troca de bênçãos, curas, preces e graças. Comunismo puro.

Aquela parábola do Samaritano fazendo o que sacerdotes e pastores deviam fazer e não fizeram, acolhendo e cuidando do pobre jogado à beira da estrada, fiquei mesmo em dúvida. 

Porque caridade assistencial, pode. O que não pode é perguntar quem o assaltou? Quem o roubou? Talvez por isso os servos do templo preferiram passar ao largo. Aproximar-se dos pobres pode levar a compromissos mais profundos. Droga. Já estou com argumentação comunista para a mente poluída dos que me acusam. Sem riscos. O Evangelho de Lucas não terá mais essa parábola quando o apresentar em minha defesa.  

Rasguei também as Bem-Aventuranças e as mal aventuranças de Lucas. “Bem-aventurados vós os pobres”, “malditos vocês ricos”, doideira, luta de classes, marxismo. Vade retro, satanás. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”, de Mateus, excluí também.  

Olhei melhor e excluí também, em Mateus, a bem-aventurança da paz, pois agora são tempos de armas e cruzadas contra os inimigos e hereges. Falar de paz contraria o novo “messias” da metralhadora no lugar do feijão. 

E aquele texto em que Jesus afirma “vós TODOS” sois irmãos”. Vai que neste TODOS eles imaginem que estejam sem-terra, negros, índios, LGBTI+, sem teto, migrantes, moradores de rua, “todos esses que não prestam”… Meus IRMÃOS, esses? Nem a peso de ouro. Comunismo. Página rasgada. 

E aquela cena de lavar os pés dos discípulos e dizer “os grandes da terra dominam com tirania, entre vocês não seja assim”. Quebra de hierarquia social. Sem dúvida, comunismo. Decidi não correr risco e página no fogo.  

Tomei algumas precauções a mais. Eliminei a passagem de João em que uma mulher surpreendida em adultério ia ser apedrejada e Jesus não deixou. Vão pensar que defendo pessoas de “má vida”. Além do mais, poderiam perguntar por que o homem adúltero estava livre das pedradas? Essa mania de fazer perguntas que levem a pensar é coisa de Paulo Freire, um comunista-mor.

Eliminei também aquela em que Marta pediu que Maria voltasse para a cozinha e Jesus garantiu o direito de as mulheres participarem do mesmo círculo que os homens em pé de igualdade. As mulheres podem querer exigir demais baseadas nisto. Risco eliminado. Feminismo é fruto do comunismo e ponto final.

Aí passei a me preocupar com o Antigo Testamento. Rasguei o profeta Isaias inteiro. Muito perigoso. Depois Amós. Eliminei Oseias. Retirei Miqueias. Muito contra a exploração e a favor dos injustiçados. E ainda Esdras e Neemias, que são assembleístas e distributivistas demais. Não me ajudarão na defesa. 

Minha Bíblia estava ficando pequena, mas, paciência, eu precisava salvar meu couro da sanha anticomunista. 

Aí passei a me preocupar com o Êxodo. Organizar escravos, enfrentar governantes tiranos, acampar em deserto e conquistar terra prometida, e Deus apoiando. Credoemcruz, isso é MST na veia, comunismo da gema. Eliminei o livro inteiro. 

Mas aí lembrei também de Levítico e Deuteronômio. Aquelas leis para garantir justiça, estabelecer ano sabático para devolver terras, e ainda dizer “que entre vós não existam pobres”… Perigoso demais. Dois livros a menos.

Aí cansei. A Bíblia já estava miudinha. Preservei os textos de Salomão cobrando impostos pesados ao povo, vivendo no luxo, com 700 esposas oficiais e mais 300 concubinas. Esse sim, garanto que não tem nada de comunista. Façamos templos e altares a Salomão.

Até pensei em argumentar que os primeiros defensores modernos de uma sociedade de iguais, embora utópica, foram dois pensadores cristãos, Morus e Campanela.

Também pensei em fazer distinção entre socialismo e comunismo, para que, pelo menos, se saiba do que se está falando quando se multiplicam falas superficiais por aí afora sobre o tema. E que o socialismo, como movimento histórico, despido de ateísmo e totalitarismo, recebeu abertura para engajamento cristão na encíclica Octogésima Adveniens do Papa São Paulo VI. 

Mas acho que diante de tanta pequenez intelectual e tanto fanatismo cego, de pouco adiantará. 

Talvez nem minha diminuta Bíblia rasgada e purificada me sirva de defesa.

Mesmo assim continuarei frade engajado nas lutas sociais em defesa dos desprotegidos, excluídos e explorados; anticapitalista, socialista e seguidor de Jesus de Nazaré, o Cristo Crucificado e Ressuscitado.

Melhor ser acusado de comunista do que ser, de fato, alienado, omisso, em má consciência com a fé que professo. 

Me chamem do que quiserem e me ataquem como quiserem. 

Mas, por preferência, gostei mais de ser chamado de “frei melancia”. Aquele suco vermelho é muito doce.  

 

Sérgio Antônio Görgen é frei franciscano, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e autor do livro “Em Prece com os Evangelhos”