“Eu tenho uma filha contaminada que a equipe médica já me disse: 'Simone, dificilmente sua filha conseguirá entrar numa fase adulta devido à contaminação que ela tem no organismo'. Então, eu não posso parar. Enquanto eu tiver vida, eu tenho que lutar”.
O relato de Simone Silva, moradora de Barra Longa (MG), é a síntese do desalento e da indignação em que vivem centenas de famílias do município - o único que teve o centro urbano tomado pela lama da Vale/Samarco/BHP Billiton.
Sua filha, Sofya, tinha apenas dez meses quando a Barragem de Fundão, em Mariana (MG), se rompeu há exatos 6 anos, matando 19 pessoas e despejando cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro ao longo da Bacia do Rio Doce.
Desde o crime, começaram a apresentar os primeiros sintomas de intoxicação. Hoje, além de infecções no intestino e no cérebro, a menina de 7 anos apresenta problemas respiratórios e de pele, e desde o início da pandemia não sai de casa.
Em 2017, quase dois anos após o rompimento, Sofya e mais 10 moradores de Barra Longa (MG) participaram de um estudo do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS), o primeiro diagnóstico toxicológico mais aprofundado sobre a população do pequeno município.
A pesquisa comprovou que todos tinham um alto nível do metal níquel no sangue e uma quantidade anormal de arsênio.
Hoje, ao Brasil de Fato, Simone revela que das 11 pessoas que participaram da pesquisa, 6 morreram.
“As pessoas foram perdendo pedaços do corpo. Cortavam um pedacinho do dedo, depois cortavam um pé, depois a perna, o trem aqui é muito grave. E não é por falta da gente gritar que ninguém sabe disso. Se 11 fizeram exame, e 6 já morreram, a situação é crítica gente”, conta.
A coleta das amostras de sangue foi feita em pessoas com idade entre 2 e 92 anos, e que já vinham apresentando problemas de saúde após o rompimento, em 5 de novembro de 2015.
A médica Evangelina Vormittag, que coordenou a pesquisa na época, confirmou ao Brasil de Fato que o Instituto Saúde e Sustentabilidade não acompanha o quadro dos pacientes desde 2018 - alguns, como o caso de Sofya, chegaram a viajar até São Paulo (SP) para serem atendidas no Hospital das Clínicas. A médica tinha conhecimento de 2 óbitos.
Vale/Samarco/BHP Billiton, por meio da Fundação Renova, nunca aceitaram os resultados das análises, e ainda sustentam em seus veículos oficiais que os rejeitos não são tóxicos.
O tratamento de Sofya hoje é custeado por meio de uma decisão da justiça, já que a Renova se recusou a garantir e reconhecer a gravidade do quadro de saúde da criança.
Racismo na reconstrução do município
Em Barra Longa (MG), a reconstrução e limpeza do município por parte das mineradoras, sob responsabilidade da Fundação Renova, foi realizada sem a retirada da população.
Alguns locais foram mais impactados, como foi o caso do bairro Volta da Capela. Na comunidade, que tem a população predominantemente negra, foi depositado grande parte do lixo do minério retirado da cidade.
“Muitos que tiveram contato com a lama, surgiram com câncer assim do nada. E o câncer foi comendo a pessoa de uma hora para outra, pessoa que nunca teve problema na vida dele”, revela a mãe de Sofya, destacando a prática de racismo ambiental por parte das mineradoras.
No ano passado, a realização de um estudo, a pedido do Comitê Interfederativo (CIF), foi uma das mais recentes comprovações da exposição dos 5 mil habitantes aos metais pesados vazados da Barragem do Fundão, há exatos 6 anos.
O laudo da empresa Ambios Engenharia, com ampla experiência na área, classificou o município de Barra Longa com risco iminente à saúde humana pela contaminação do solo, das águas e do ar.
A pesquisa, porém , foi refutada pelo juiz Mário de Paula Franco Júnior, da 12 Vara de Belo Horizonte, que chegou a classificar as análises como “imprestáveis, inservíveis, inadequadas".
“Provas, nós temos. Documentos, nós temos. Estudos e mais estudos. Mas quem vai fazer a justiça? Onde nós vamos buscar essa justiça?”, finaliza Simone Silva.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou a 12ª Vara Federal Cível e Agrária da SJMG, mas não obteve retorno.
Confira as respostas enviadas pela Fundação Renova ao Brasil de Fato, sobre os assuntos levantados na reportagem:
1) Em relação a saúde dos atingidos, em 2017, quase dois anos após o rompimento, Sofya Silva - filha da moradora de Barra Longa (MG) Simone Silva -, e mais 10 moradores do município participaram de um estudo do Instituto Saúde e Sustentabilidade, sobre a possível contaminação da população por metais pesados provenientes do rejeito vazado da barragem.
A Fundação Renova esclarece que, conforme estabelecido pelo Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), a instituição vem cumprindo todas as ações previstas e destinadas a prestar apoio para o atendimento à Prefeitura de Mariana na execução dos planos de ação de saúde e de assistência social para atenção às famílias atingidas e que sofreram deslocamento físico. Até o momento, foram investidos cerca de R$ 16 milhões no município para essas ações.
Nas áreas de saúde e proteção social, a Fundação Renova apoia o município com o incremento das políticas públicas e com a contratação de cerca de 30 profissionais – entre médicos, fisioterapeuta, odontólogo, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e psicólogos, por meio de empresa terceirizada. As atividades destes profissionais estão sob a gestão da Secretaria Municipal de Saúde e de Desenvolvimento Social e Cidadania.
Outros profissionais complementares também têm sido contratados diretamente pela Prefeitura de Mariana, com o financiamento da Fundação Renova, conforme Acordo Judicial firmado. A Fundação Renova também entregou, em maio de 2020, o novo Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSij).
O espaço foi reformado e ampliado pela Fundação, possibilitando melhorias no atendimento, tratamento e acolhimento de crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais graves e persistentes em Mariana (MG) e região. As obras fazem parte do compromisso firmado entre a instituição e a Prefeitura de Mariana. A Secretaria de Saúde do município faz a gestão do novo centro, que conta com um atendimento integral realizado por uma equipe multidisciplinar, formada por psicólogos clínicos, psiquiatra, assistentes sociais, fonoaudiólogo, terapeutas ocupacionais, sociólogo e arte terapeuta.
Em Barra Longa, a Fundação efetua o repasse de cerca de R$ 8 milhões para fortalecimento dos serviços públicos de saúde do município. O repasse é resultado de acordo judicial, firmado entre o município de Barra Longa, a Fundação Renova e suas mantenedoras. A atenção à saúde da comunidade de Barra Longa é realizada desde o rompimento da barragem de Fundão, em 2015. A partir de 2016, a Fundação Renova passou a disponibilizar profissionais de saúde e de assistência social para o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
2) A pesquisa demonstrou que todos apresentavam níquel no sangue e níveis de arsênico acima do normal. Hoje (4), em entrevista ao Brasil de Fato, Simone Silva revelou que das 11 pessoas que participaram da pesquisa, 6 já morreram.
A Fundação Renova esclarece que os estudos de Avaliação de Risco à Saúde Humana (ARSH) realizados em Mariana, Barra Longa e Linhares necessitam de complementação de dados para que seus resultados sejam conclusivos, por determinação judicial. Para as demais áreas, os documentos para o início dos estudos foram elaborados e aguardam manifestações do juízo. Os estudos de ARSH servirão de base para o desenvolvimento dos estudos epidemiológicos e toxicológicos. O assunto saúde é um dos eixos prioritários sob discussão na 12ª Vara Federal, em Belo Horizonte.
3) A Fundação Renova tem conhecimento destes óbitos relatados por Simone? A mãe de Sofya também alega que a Renova se recusou a custear o tratamento de saúde da menina, hoje com 7 anos. O que a Renova tem a comentar sobre esta alegação?
Em respeito à privacidade dos atingidos, a Fundação Renova não comenta casos específicos publicamente. Para este atendimento, os atingidos contam com os canais de atendimento e diálogo.
Edição: Leandro Melito