Após seis meses de investigação, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da BHTrans da Câmara Municipal de Belo Horizonte entregou seu relatório final no último dia 8. O documento contém mais de 400 páginas e pede o indiciamento de 39 pessoas, entre elas os principais empresários do transporte da cidade e o prefeito Alexandre Kalil (PSD). Os crimes listados pela comissão envolvem peculato, prevaricação e condescendência criminosa, formação de cartel, associação criminosa, apropriação indébita, entre outros.
Ao longo das 35 reuniões de trabalho, a comissão enfrentou inúmeras dificuldades para investigar o caso. Para se ter uma ideia, cerca de 30 páginas do contrato alvo das investigações, que cede às concessionárias de transporte o direito de prestar o serviço na capital, desapareceram.
Afirmar que Kalil cometeu um crime e que por isso pode ser alvo de impeachment, é uma violação ao processo democrático
Nas apurações, os sete vereadores que acompanharam a CPI verificaram irregularidades, como o não pagamento de seguros obrigatórios por parte dos empresários, a retirada irregular dos cobradores, o saque, também irregular, de valores do fundo garantidor do contrato e a não realização de auditoria em 2016, como previa o contrato.
Para comentar as denúncias, o Brasil de Fato MG conversou com a vereadora Bella Gonçalves (Psol), uma das integrantes da CPI. Na entrevista, ela destaca os pontos principais sobre o caso, comenta sua discordância sobre o indiciamento de Kalil e aponta quais os próximos passos na luta pelo transporte público na capital.
Belo Horizonte vive um caos da mobilidade em função de um contrato fraudulento estabelecido em 2008
Brasil de Fato – Quais são os principais apontamentos do relatório final da CPI e da investigação como um todo?
Bella Gonçalves – É preciso destacar que, embora o nome seja CPI da BHTrans, o que aconteceu foi uma verdadeira investigação sobre a “máfia do busão”, que está muito mais localizada no Settra, o sindicato das empresas de ônibus, e na Transfácil, que é uma espécie de banco de operação financeira das empresas de ônibus, do que na empresa BHTrans. A fonte de corrupção está nas empresas, não no Estado. E isso a gente conseguiu perceber de maneira muito evidente.
O que a gente conseguiu desvelar também, e que já era alardeado pelos movimentos populares, como o Tarifa Zero e organizações pelo passe livre na cidade, é que Belo Horizonte está vivendo hoje um caos da mobilidade em função de um contrato fraudulento estabelecido em 2008. A cidade tem uma das tarifas mais caras do mundo e um transporte que só piorou nos últimos anos.
Hoje, as empresas devem R$35 milhões em multa à prefeitura, mas só com a retirada dos cobradores elas lucraram R$200 milhões
Nessa concessão do transporte público, não houve um processo real de concorrência entre as empresas, mas sim um estabelecimento de regras de um contrato benéfico para os empresários de ônibus sem concorrência real. O que a gente conseguiu comprovar a partir dos indícios de formação de cartel. Para se ter uma ideia, as empresas que concorreram entre si foram ao cartório fazer registro de documentos sequencialmente, o que mostra que uma terceira pessoa teria articulado esse esquema fraudulento.
O contrato retirou do poder público o controle sobre a operação do transporte em BH, sobre a bilhetagem do sistema, e entregou tudo isso na mão das empresas. Ou seja, pegou a chave do galinheiro e entregou na mão da raposa.
E aí o que as empresas fizeram? Elas retiraram os cobradores, começaram a apresentar notas falsas para dizer que o sistema opera em prejuízo, para pressionar aumentos sucessivos da tarifa. Ou seja, quanto pior o transporte, melhor para as empresas, quanto mais caro para a população, melhor para as empresas. E foi assim nos últimos anos. E por isso a população vive hoje na situação penosa do transporte público.
O mais importante é que o relatório indicia mais de vinte e dois empresários de ônibus e isso é histórico
Além disso, nós conseguimos provar que mesmo o contrato fraudulento foi sistematicamente descumprido ao longo dos últimos anos. Por exemplo, ele não previa rescisão ou penalizações mais amplas para as empresas, apenas multas. Mas essas multas nunca foram pagas. Hoje as empresas devem R$ 35 milhões para a prefeitura.
E, só com a retirada dos cobradores, as empresas lucraram R$ 200 milhões. As gestões municipais anteriores ainda dispensaram as empresas de transporte do pagamento de impostos, como ISSQN e uma taxa de operação do sistema (CGO). Ou seja, o contrato, além de ser super benéfico para as empresas, ainda foi desconstruído por gestões liberalizantes, criando um sistema absolutamente corruptor da própria BHTrans.
Na CPI, chegamos a três agentes da BHTrans que seriam os operadores desse sistema para o benefício das empresas. Os três eram funcionários de carreira, foram presidentes e diretores da BHTrans e responsáveis por algumas dessas medidas no interior da empresa.
Mas, o mais importante é que o relatório indicia mais de vinte e dois empresários de ônibus. E isso foi histórico. Conseguimos escancarar para o povo que as empresas são famílias que não têm nenhum apreço pela população, pela mobilidade, apenas pelos seus lucros. Chegar com um pedido de indiciamento das empresas é algo que nunca tínhamos tido na história da cidade.
Não é possível operar transporte como direito sem pensar em subsídio e em controle público
O indiciamento do prefeito Alexandre Kalil foi um ponto de discordância entre os membros da CPI. Por que você se posicionou contrária a essa recomendação?
O relatório todo foi construído com base em provas e evidências, e por isso era consensual entre os integrantes da CPI. Mas, em função das disputas entre a Câmara Municipal e a prefeitura, na sexta (5), vereadores apresentaram um texto muito inconsistente, sem elementos probatórios que justificassem o indiciamento do prefeito eleito na cidade.
A gente já percebeu como esses tipos de ações de perseguição jurídica e parlamentar podem minar a democracia. Por isso nós fomos contra. Não porque o Alexandre Kalil não tenha que ser investigado, todos os prefeitos que participaram nas questões da BHTrans precisam ser investigados. Inclusive, a Gabinetona pediu uma investigação da Prefeitura de Belo Horizonte em abril, antes da instauração da CPI. Mas o indiciamento como foi feito e midiatizado, em minha opinião, desviou o foco central do relatório. As manchetes de jornal deixaram de ser "empresários de ônibus são indiciados" para ser "prefeito Alexandre Kalil é indiciado pela CPI da BHTrans".
Qual foi a justificativa dos vereadores para o indiciamento? O prefeito fez o adiantamento de passagem para as empresas de ônibus. Operação que nós discordamos, inclusive denunciamos ao Ministério Público. Mas essa operação foi feita pela BHTrans junto com as empresas e foi validada pelo Tribunal de Justiça e pelo próprio Ministério Público.
Então é um pouco frágil dizer que existem elementos de ilegalidade nessa operação. A gente discordou dessa ação e foi para cima da prefeitura politicamente, mas não para dizer que a prefeitura cometeu um crime, isso seria uma levianidade. Fomos para cima para garantir que a Prefeitura de Belo Horizonte transforme esse adiantamento de passagem, em passagem para população em situação de pobreza e extrema pobreza. Inclusive, já foi enviado pela prefeitura um projeto de lei que institui tarifa social para essas famílias, com cartões com um ano de gratuidade. Isso é muito importante e eu acho que reverte um equívoco da gestão.
O prefeito deixou muito a desejar no enfrentamento a "máfia do busão", disso a gente não discorda. Agora, afirmar que ele cometeu um crime e que por isso poderá ser alvo de impeachment, para nós é uma violação ao processo democrático.
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No início dos trabalhos da CPI, movimentos populares alertavam para a tentativa de alguns vereadores de canalizar o resultado dos trabalhos da comissão para a privatização da BHtrans. Você pode comentar sobre essa situação e sobre a extinção da BHtrans?
A primeira questão é que o nome da comissão é CPI da BHTrans e não CPI da Settra, ou da Transfácil, ou das empresas de transporte. Isso é um problema, porque as pessoas aumentam sua raiva da BHtrans.
É importante dizer que o projeto aprovado na Câmara, que extingue a BHtrans, não é um projeto privatizante. Hoje a BHTrans é uma empresa mista e passa a ser Superintendência de Mobilidade. Não necessariamente isso vai conduzir a uma privatização do transporte, até porque o transporte já é totalmente privatizado na nossa cidade.
Acho que existe uma pressão para entrada de outros atores dentro do processo do transporte. Pode ser que as ideias de transporte por demanda e aplicativo levem a uma desregulamentação completa do transporte na cidade, o que seria completamente desastroso. A gente já mostrou que a liberalização e entrega para a iniciativa privada fez o caos que estamos vivendo hoje.
A mobilidade hoje está em debate, em disputa. É muito evidente que o sistema de transporte como ele é concebido em todo Brasil faliu. Não é possível operar transporte como direito, sem pensar em subsídio, sem pensar em controle público.
Agora qual é a saída? Retomar o controle social e público do transporte ou desregulamentar tudo e transformar em uma economia de uberização? Isso que está em debate hoje, essa é a nossa encruzilhada.
Uma das recomendações do relatório é a extinção do contrato de 2008, que tem essa série de irregularidades, como a CPI apontou. O que a população pode esperar daqui para frente? Qual o saldo para o povo belohorizontino e quais são as próximas lutas do setor?
É importante não perder o foco central que é o desmantelamento da "máfia do busão".
A Prefeitura de Belo Horizonte, logo depois que a CPI terminou, criou um grupo de trabalho para apurar as irregularidades do contrato de 2008 e talvez saia uma proposta de repactuação ou extinção do atual contrato. Também há uma ação no Ministério Público sobre isso. Espero que, de fato, o processo continue sendo conduzido para o fim desse contrato, não aguentamos mais sete anos com esse sistema em crise e os empresários lucrando em cima do povo.
Nesta semana, vamos votar na Câmara dois projetos que retiram a isenção de impostos das empresas de ônibus e proíbem aquelas que são caloteiras e devedoras da União em direitos trabalhistas, de operar. Isso aumenta a tensão para cima dos empresários e força os processos para repensar o contrato. E pode ser que as empresas, de agora para frente, queiram aumentar a retaliação para cima da população, tirando ônibus da rua, chantageando as pessoas com a piora ainda maior do sistema.
A população precisa se informar e se mobilizar para não ser refém das empresas. Tenho visto que a prefeitura tem atuado como se fosse uma refém das ameaças dos empresários e é preciso que se adote outra postura. É preciso peitar essas empresas e convocar a população a fazer a luta política.
Também estamos construindo projetos de lei para pensar critérios para elaboração de novos contratos entre as empresas de ônibus e a Prefeitura de Belo Horizonte e também para construir, pensar em quais circunstâncias poderia se propor o subsídio do transporte. Porque o subsídio, como é proposto hoje, só é benéfico para as empresas e nós precisamos ter controle social sobre ele e estamos construindo essa proposta em diálogo com os movimentos populares.
Edição: Larissa Costa