Minas Gerais

EDUCAÇÃO

Artigo | O racismo está em todos os lugares

Como resposta ao preconceito, educadoras ligadas às escolas Waldorf articulam movimento preto

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
A abordagem do movimento procura impulsionar uma educação voltada para a redução das desigualdades sociais e econômicas, bem como no acolhimento da diversidade étnico-racial - Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Em 25 de maio de 2020, período em que o Brasil e o mundo viviam incertezas causadas pelo isolamento social exigido pela pandemia de covid-19, George Floyd, de 46 anos, morador de Minnesota, nos Estados Unidos, teve sua vida brutalmente retirada em uma abordagem policial depois de repetir 27 vezes que não conseguia respirar. A morte de Floyd, produziu um movimento antirracista em escala global. Nas escolas Waldorf do Brasil, esse impulso externo despertou a criação do Movimento Preto na Pedagogia Waldorf (MPPW), como questionamento da trajetória dos corpos negros em uma pedagogia essencialmente branca.

As escolas Waldorf chegaram ao Brasil em 1956 e, desde a primeira instituição em São Paulo, o currículo e a inspiração são centrados na cultura alemã. Localizadas em um contexto plural nos âmbitos histórico, político, econômico e racial, como é o Brasil, são inevitáveis as tensões dentro dos espaços escolares. No entanto, até 2020, as inquietações estavam dispersas nas diversas escolas entre mães, professoras e alunas.

No dia 6 de julho de 2020, cerca de 90 professores e professoras das escolas se reuniram de forma eufórica, curiosa e desconfiada para expressarem suas expectativas sobre o movimento antirracista recém-criado. Como era de se esperar, a desigualdade racial brasileira se replicava naquele universo, considerando que 66,3% do professorado Waldorf é branco.

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O Movimento Preto na Pedagogia Waldorf, portanto, representa um avanço, pois afirma que existem pessoas negras que querem não só acessar, mas permanecer com qualidade nesses espaços. Antes de sua criação, os casos de racismo, as tensões nas relações étnico-raciais e a legislação sobre políticas que constroem uma imagem positiva da população negra, não eram sequer mencionadas nessas escolas.

Com atuação na esfera nacional e reverberando internacionalmente, após estudos e reflexões coletivas, o objetivo do Movimento Preto é estimular o desejo de mudança, no que tange a representatividade e a proporcionalidade de pessoas negras nesses espaços. Sabemos que pretos e pardos ocupam a maior parte dos cargos de porteiros, faxineiros e cozinheiros. Sabemos também que, nessas escolas, existe um baixo número de famílias, crianças e professoras/es negras. No entanto, a atuação do movimento já provocou algumas mudanças tímidas, como ações afirmativas no processo de contratação de professores e professoras.

Promovemos o estudo, incentivamos e articulamos ações com vistas a efetivação da Lei 10.639, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e o trabalho com a educação das relações étnico-raciais. Com isso, queremos despertar a consciência racial em toda a comunidade escolar, principalmente em professoras/es que são o “coração” dessas instituições, mas também na comunidade e na gestão das escolas, de modo que as mudanças promovidas pela efetivação da lei de fato cheguem nas/os alunas/os. 

Além disso, a abordagem do movimento procura impulsionar uma educação voltada para a redução das desigualdades sociais e econômicas, bem como no acolhimento da diversidade étnico-racial e de combate a todas as formas de preconceitos, discriminações, racismo e xenofobia no ambiente escolar, pois o contexto da sociedade brasileira é multicultural e pluriétnico. 

A formação das educadoras deve enfocar em uma prática reflexiva que valorize todos os humanos na mesma medida. O currículo da Pedagogia Waldorf, no entanto, atende a uma tradição eurocêntrica, fundamentada em uma hierarquia, mesmo estando no Brasil há mais de 60 anos, cujas referências são em sua maioria alemã.

Atualmente a organização do Movimento Preto é composta por três mulheres negras, voluntárias, que promovem encontros para estudos e aprofundamentos das questões raciais ligadas ao campo educacional. As reuniões são mensais com professores e professoras que atuam nas escolas ou possuem algum vínculo com elas. 

Desde o ano passado, recebemos inúmeras denúncias de professoras e mães de estados diferentes do Brasil. Isso demonstra uma contradição, uma vez que Pedagogia Waldorf se anuncia como “humana”, mas crianças negras, professores negros e famílias negras são desumanizados no processo pedagógico. Por isso, é preciso tencionar para que algo seja feito. Nós negros e negras também acessamos esses espaços e vamos lutar para permanecer neles na mesma medida que pessoas não negras.

E urgente a implementação da Lei 10.639, de 2003, lei federal que torna obrigatório o ensino da cultura africana e afro-brasileira e a educação das relações étnico-raciais nas escolas públicas e privadas nos sistemas de ensino. Em 2008, tivemos a aprovação da Lei 11.645, que também obriga a inclusão da história e cultura indígena. Para além da obrigatoriedade, esses mecanismos legais têm como protagonistas os movimentos negros, que produzem saberes e se articulam por uma sociedade mais justa e humana para todos, não somente para o “humano universal”, que é branco, hétero e detentor de poder econômico, político e social.

Nos movimentamos para que os discursos como o do ocorrido no dia 12 de novembro de 2021 sejam repensados e responsabilizados. Na ocasião, uma bonequeira (pessoa que faz bonecas respeitando os preceitos da Pedagogia Waldorf), postou uma frase nas redes sociais dizendo que apesar da pele da boneca ser “escura”, a alma “é alva como o sol”. Isso é inaceitável. O racismo e a injúria são crimes. Como acompanhamos, até um dado momento isso foi tratado com naturalidade pelas pessoas. Posteriormente, outras pessoas começaram a exigir que a frase fosse deletada. 


Uma bonequeira (pessoa que faz bonecas respeitando os preceitos da Pedagogia Waldorf), postou uma frase nas redes sociais dizendo que apesar da pele da boneca ser “escura”, a alma “é alva como o sol” / Reprodução Redes Sociais

Essa situação demonstra o quanto o fazer pedagógico de uma escola e o processo educativo nas instituições escolares podem contribuir para a manutenção e reprodução de estereótipos, preconceitos e discriminação. E por isso ficamos com a seguinte pergunta: partindo do princípio que a Pedagogia Waldorf se apresenta com enfoque na formação humana das crianças, que tipo de professorado está sendo formando? Precisamos avançar com urgência para uma perspectiva de reparação racial com vistas para a justiça social. 


 

Carolina Oliveira, Daniele Caetano e Elizabeth Leme são professoras e integrantes do Movimento Preto na Pedagogia Waldorf (MPPW)

 

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

Edição: Larissa Costa