O nome “Consulta Pública” pode enganar. Parece mesmo, para os mais ingênuos ou esperançosos, um instrumento de legitimação popular. Algo que visa conferir maior legitimidade democrática, que celebra os princípios constitucionais da administração pública e que deveriam nortear as ações das empresas públicas, como as da Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (Codemge/Codemig), integrante da administração pública indireta do Estado de Minas Gerais.
Mas se os nomes podem enganar algumas vezes, então é preciso aparar as arestas e buscar o significado das palavras, para além do que elas oferecem no primeiro lance.
E esse é o caso da Codemge/Codemig, detentora da mina das águas de Caxambu, Cambuquira, Lambari e de outras Estâncias Hidrominerais, no Sul de Minas. A empresa abriu uma "Consulta Pública" e apresentou bens imobiliários em um “cardápio”, que inclui o Parque das Águas de Caxambu, para receber propostas do setor privado de compra, concessão ou aluguel, até o dia 31 de janeiro de 2022.
O nome “cardápio”, trazido entre aspas, é porque faz referência ao seu autor. Segundo o presidente da Codemge, Thiago Toscano, a consulta pública aberta pela companhia busca inverter a lógica normal da licitação, preparando-a para aquilo que tem, nos seus dizeres, “apetite do mercado”.
Assim, a ideia de “Consulta Pública” é subvertida na origem: “consulta popular” se transforma em “cardápio especial”. Ao invés de medir os desejos e anseios dos cidadãos, mede os ânimos do "mercado", esse bicho antropomorfizado que, na “visão estratégica” da companhia, possui "apetites" que devem ser saciados.
Já dizia Humpty Dumpty para Alice, a do País das Maravilhas, que, quando se usa uma palavra, ela significa exatamente aquilo que se quer como significado, nem mais e nem menos. Alice contesta o ovo humanóide, pois, para ela, a questão é saber se é possível fazer as palavras dizerem coisas diferentes. Humpty Dumpty, em sua sabedoria zigótica, responde que “a questão é saber quem é que manda, é só isso”. E parece mesmo que a Codemge levou essa lição ao pé da letra.
Riscos à cultura e à memória
Entre os ativos disponibilizados pela Codemge, estão patrimônios socioculturais de extrema importância memorialística e afetiva para comunidades locais e seus territórios, como o Parque das Águas de Caxambu e seu balneário, maior complexo hidromineral do mundo, com 12 fontes de águas minerais, gasosas e medicinais, além do prédio hidroterápico, gêiser e mata adjacente. Inclui também o Museu das Águas, sediado no belíssimo Cassino de Lambari, prédio construído em 1909 pelo então prefeito do município, Américo Werneck; e a Thermas Antônio Carlos de Poços de Caldas, primeiro estabelecimento termal do Brasil, inaugurado em 1931.
Apesar de não constar na consulta, há a notícia sobre a possível venda de terrenos em área sensível do aquífero que abastece o Parque das Águas de Cambuquira, no bairro da Figueira, desconsiderando ação judicial anterior que obriga, inclusive, a não intervenção antrópica na área. A ação é de autoria do Ministério Público Federal e requer, nos terrenos exíguos ao Parque das Águas, a fiscalização permanente da proprietária Codemge, de forma a impedir a perfuração ilegal de poços tubulares ou artesianos, sem prejuízo de identificação dos já existentes. A ação ainda exige que a empresa se abstenha de autorizar novas edificações ou intervenções na área.
::Leia também: Artigo: Na justiça engarrafada, as águas são públicas, porém privadas::
Segundo o presidente da Codemge, a intenção quanto ao Parque de Caxambu é de exploração por um privado, no formato de concessão ou termo de permissão de uso. A questão não é se esse é o modelo ideal de negócio para o parque de águas, embora questionável a entrega a um ente privado, diante do financiamento recente por parte do poder público.
O que intriga a comunidade local e regional é o absoluto desinteresse da estatal – e não é a primeira vez que isso acontece – em ouvir os povos das águas, os primeiros interessados na questão. E no cardápio da Codemge para os “parceiros” e os seus acionistas, vão ofertados para banquete os corpos e almas dos povos das águas do Parque e Balneário de Caxambu, do Cassino de Lambari, Thermas de Poços de Caldas, entre outros. Em suma, são ofertadas a cultura e a história do povo mineiro.
Empresa pública, porém, privada
Como já dito em outras oportunidades, a empresa Codemge, apesar de pública, tem defendido, ao longo de sua trajetória, interesses nitidamente privados, entrando em contradição com os valores que deveria, em tese, defender.
Um exemplo, para além da "Consulta Pública", é o ingresso de mandado de segurança na justiça contra ato de registro por parte do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (Compac), do ato centenário de coleta de águas minerais do Parque de Caxambu como patrimônio imaterial, alegando cerceamento do direito à liberdade econômica e à propriedade.
Trocando em miúdos: para o governo, tendo, de um lado, os interesses dos povos coletores de água e o direito à sua memória e ancestralidade, e, de outro, o interesse da exploração predatória, deve ser protegido o segundo. A prioridade, para o governo é priorizar parcerias da Codemge com indústrias do ramo alimentício, exploradoras de águas, tudo com fins de proteger os interesses privados.
A velha política do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que guarda já no nome do seu partido o duplipensar orwelliano (novo, ainda que velho), tem ordenado, em passos meticulosos, a retirada definitiva das vestes públicas da Codemge/Codemig.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Hoje, a Codemge tem o Estado como principal acionista, com 99,99% de suas ações, e 0,01% é de titularidade da Minas Gerais Participações (MGI). Contudo, a empresa foi incluída por Romeu Zema na Política Estadual de Desestatização (PED), por meio do Decreto Estadual 47.766, de 26 de novembro de 2019, que propõe “reordenar a posição estratégica do Estado na economia, concentrando sua atuação em atividades de relevante interesse coletivo e transferindo à iniciativa privada atividades que podem ser melhor exploradas pelo setor privado”.
Ainda aliada à política catastrófica do partido Novo, está o envio para a Assembleia Legislativa de MG, em 2019, do Projeto de Lei 1203/19, que solicita autorização legislativa para realizar a privatização da Codemig.
Em suma, os movimentos recentes da estatal apontam para a possível ocorrência, ainda que futura, da "privatização branca", prática vedada pelo STF, com a tentativa, por parte do governo de MG, de contornar a autorização legislativa, fato hoje já questionado pelo Ministério Público de Contas.
A Codemge, por sua vez, alega que está buscando reorganizar seu "portfólio de ativos", deixando-o "sustentável", sustentabilidade essa outra palavra subvertida na origem, em consonância à lição de Humpty Dumpty.
Falta de participação popular
Ainda que não seja uma “privatização branca”, é óbvio o desinteresse da Codemge/Codemig na participação popular. Se ainda é questionável a tentativa de contornar autorização legislativa para a privatização da companhia, é incontestável o desprezo dos interesses do povo mineiro.
No dizer do presidente da Codemge, Thiago Toscano, filiado e alinhado ao pensamento de Romeu Zema, ao falar em "apetite do mercado”, é óbvia a opção do governo pelo deus mercado, que tende a pensar a Economia (com “E” maiúsculo) como a nova Natureza — Segunda Natureza, para falar como o antropólogo francófono Bruno Latour. O deus mercado, ao menos desde Adam Smith, ganhou mãos invisíveis, mas conta com a sistemática mão do Estado para tornar seus desejos possíveis.
Não é de hoje a má gestão e descaso da Codemge quanto a esses patrimônios (ou matrimônios, para lembrar da Mãe Terra), importantíssimos para os povos das águas e para os mineiros. A pergunta é: quando os povos das águas serão ouvidos? Quando haverá, de fato, gestão participativa nas questões das águas minerais? Quando serão considerados os interesses dos que deveriam ser os primeiros a serem ouvidos, como o coletivo de usuários, povos coletores de água que há milênios se relacionam com as águas e com os parques?
Em um Estado democrático de direito, é errado ou absurdo demais desejar que os povos das águas sejam levados em consideração?
Ana Paula Lemes de Souza é doutoranda em direito da UFRJ, pesquisadora, ensaísta, professora e advogada. É nascida e moradora da região do Circuito das Águas do Sul de Minas Gerais, Brasil.
--
Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa