A Constituição Federal de 1988 não assegura o direito absoluto à propriedade
Temos que pensar as sociedades, os territórios e a globalização transnacional do capital não apenas como espaços, movimentos e identidades homogeneizantes. Em Minas Gerais, por exemplo, temos grande diversidade territorial e cultural. No Sul de Minas, as monoculturas do café e do pasto predominam. No Sudoeste de Minas, os canaviais mudam o panorama territorial. No Triângulo Mineiro, a pecuária e as monoculturas do café, da cana e do capim.
Em Belo Horizonte e Região Metropolitana, no quadrilátero ferrífero, que é primordialmente um “quadrilátero aquífero”, a exploração de minério de ferro há mais de 300 anos desfigura o território e desertifica várias áreas. Monoculturas do eucalipto se alastram nas regiões Norte, Noroeste e Vale do Jequitinhonha.
Minas Gerais é estado mais assolado e devastado pela monocultura do eucalipto. As comunidades quilombolas estão espalhadas por quase todo o território mineiro, mais de 600 delas já possuem auto reconhecimento. No Brasil, a Fundação Palmares contabiliza a certificação de 2821 comunidades como remanescentes de quilombo rural ou urbano. Espalhados em todas as regiões de Minas Gerais estão centenas de acampamentos e 422 assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de vários outros movimentos de luta pela terra.
No Norte de Minas, estão também as comunidades tradicionais: geraizeiros, vazanteiros e ribeirinhos, nas margens dos principais rios. Nessa perspectiva, pode-se inferir que cultura ou território, como um espaço carregado de historicidade, não existe de forma estagnada, fixa, mas como cultura dinâmica, construída a partir de uma situação relacional aberta, e em movimentos constantes de mudanças, de fluxos e contrafluxos.
Nesse contexto, é necessário compreendermos a função social da propriedade da terra como coluna mestra da propriedade. A terra não é apenas pátria (pai), mas mãe: pacha mama, como os povos indígenas quéchuas a chamam e a representam como uma mulher levando ao colo sua criança. Interessa-nos a função social da propriedade da terra, pois propriedade é um conceito, algo abstrato, que se tornou “um direito criado, inventado, construído, constituído”, nas palavras de Carlos Frederico Marés.
Para se compreender a luta pela terra como pedagogia de emancipação humana, temos que analisar a fundo a questão da propriedade capitalista da terra. Joaquim Modesto Pinto Júnior e Valdez Adriani Farias, no artigo Função Social da Propriedade: dimensões ambiental e trabalhista, asseveram que “a propriedade não é mais direito absoluto. Com efeito, embora parte da doutrina e jurisprudência, de forma totalmente contrária ao sistema posto, relute em negar proteção absoluta ao direito de propriedade, o fato é que o ordenamento constitucional e infraconstitucional vê que pesa sobre a propriedade uma hipoteca social”.
Propriedade não é direito absoluto
A esse propósito nos referimos à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 2213, que diz: “o direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), a propriedade deixa de existir”. Há jurisprudências no sistema judiciário brasileiro em que pedidos de intervenções judiciais da União em Estados da federação foram negados. Por exemplo, na primeira semana de agosto de 2014, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou acórdão em que negou, por unanimidade, pedido de intervenção federal no Paraná para compelir o governo estadual de realizar reintegração de posse com uso da força ao proprietário da Fazenda São Paulo, no município de Barbosa Ferraz, que tinha escritura e registro, mas não cumpria a função social.
Essa decisão do STJ, na prática, definiu que a propriedade não é um direito absoluto e que, por isso, mesmo que o proprietário tenha conseguido na Justiça estadual a reintegração de posse, a execução da determinação judicial causaria muitos danos sociais às 240 famílias de camponeses do MST. O Movimento tinha ocupado a fazenda por dois motivos principais: por necessidade, porque vários princípios constitucionais, como respeito à dignidade humana e direito à terra, não estavam sendo oferecidos pelo Estado e porque a fazenda estava abandonada sem cumprir função social.
Logo, para ser coerente com os princípios constitucionais e também com o objetivo da Constituição de 1988 que busca construir uma sociedade que supere as desigualdades e a miséria, a Corte Especial do STJ tomou uma decisão justa e sensata. Essa decisão foi saudada pelo MST, pela Comissão Pastoral da Terra e pela ONG Terra de Direitos, mas foi duramente criticada pela mídia comercial e por advogados e professores de direito que ainda absolutizam o direito à propriedade.
A propriedade, segundo a ideologia dominante, é algo sagrado, intocável, mas se há algo de sagrado e de absoluto na propriedade é a sua função social, que constitui, em síntese, o seu perfil constitucional. O constitucionalista José Afonso da Silva, afirma que “a doutrina se tornara de tal modo confusa a respeito do tema, que acabara por admitir que a propriedade privada se configura sob dois aspectos: a) como direito civil subjetivo e b) como direito público subjetivo. Essa dicotomia fica superada com a concepção de que a função social é elemento da estrutura e do regime jurídico da propriedade; é, pois, princípio ordenador da propriedade privada; incide no conteúdo do direito de propriedade; impõe-lhe novo conceito”, conforme se lê no Curso de Direito Constitucional Positivo.
Enfim, diferentemente da Constituição da época do império, a Constituição de 1988 não assegura o direito absoluto à propriedade e condiciona o direito à propriedade ao cumprimento da sua função social. Portanto, a função social é a coluna mestra da propriedade. Sem função social, a propriedade não é constitucional e nem legítima.
Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
5 - Frei Gilvander na ALMG: "Qualquer Alternativa de Rodoanel na RMBH será brutalmente devastadora."
6 - Acampamento Marielle Vive, em Valinhos, SP, sob ameaça de despejo. Basta de despejo! – 28/11/21
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas, e colunista do Brasil de Fato MG
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Edição: Larissa Costa