Onde todos encontravam barreiras, ele via desafios
Coragem e verdade. Esse poderia ser o binômio que melhor definia o jornalista José Maria Rabêlo, que nos deixou aos bem vividos 93 anos. Se a primeira qualidade dá a dimensão do caráter da pessoa, a segunda fez dele um modelo profissional de sua geração e exemplo para as que viriam a seguir.
Coragem não é temeridade, mas uma disposição incansável para se bater do lado certo da vida, em favor da justiça social e da liberdade. Também no jornalismo, a busca da verdade não se reduz a um formato único da arrogante imprensa dominante. Cobra criatividade, interesse pelo mundo e pelas pessoas, ter lado, capacidade crítica e, no caso do Zé Maria, uma boa dose de humor.
No entanto é sempre pouco reduzir uma pessoa de vida tão intensa como nosso Zé Maria em apenas um par de qualidades. No polinômio da vida, ele percorreu um longo caminho, que o levou ao exílio, a lutas pela democracia em diferentes contextos e à construção de projetos de sociedade. Havia em tudo que fazia uma disposição otimista. José Maria Rabêlo acreditava nos homens e nas mulheres em seu destino para a realização plena de suas existências.
Onde todos encontravam barreiras, ele via desafios. Quando a situação não estava lá muito boa, ele era capaz de animar o coro dos descontentes com um horizonte de superação possível. Foi assim no jornalismo e na vida, que para ele não eram universos separados.
Binômio: imprensa independente e alternativa
Quem conhece a biografia do jornalista sabe das barras que ele passou. Quando fundou o jornal Binômio não sabia que dava origem a uma linhagem de imprensa independente e alternativa, que não se curvava ao poder nem aos bons costumes. Enfrentou de forma aguerrida governos e empresas com jornalismo sério, sem perder o bom humor. Quis virar Minas de cabeça para baixo e quase conseguiu. Mas foi a ditadura militar que virou sua vida de ponta-cabeça.
Com sete filhos pequenos foi jogado no mundo pela sanha de um general denunciado por fascismo atávico, que empastelou seu jornal e ficou por aqui a lamentar com o rosto merecidamente marcado. Zé Maria e Thereza viveram uma diáspora dura, mas rica de qualidade humana e capacidade de superação, até retornarem com a anistia para dar sequência à luta interrompida. Trouxeram com eles a filharada ainda mais bonita de corpo e alma. O que vale quase uma revolução.
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A louvável vida pública de Zé Maria, em diversas frentes profissionais e políticas, faz par com sua capacidade de expressar afeto pela família e pelos amigos. O carinho que sempre o cercou, simbolizado pelo tocante amor do filho Fernando em seus últimos anos de vida, que o tratava como melhor amigo muito mais do que como pai, talvez seja um exemplo que traduz o que é carregar o socialismo na alma e passar adiante esse propósito civilizatório.
Em tempos ensombrecidos pelo retrocesso em todo o mundo e pelos arranjos que vão dar no golpe contra Dilma Rousseff no Brasil, Zé Maria encontrou forças para liderar muitas frentes de resistência. Escreveu livros sobre a história de Belo Horizonte e Minas Gerais, buscando mais que o mergulho redentor no passado o fio de continuidade do rio da história.
Aproximou-se do Sindicato dos Jornalistas, já na casa dos 90 anos, sendo essencial na retomada da trajetória libertária e comprometida da Casa do Jornalista. Sua presença era sempre agradável, inteligente, respeitosa, democrática e afetuosa. Mas firme, indignada e com capacidade de trabalho que não se esquivava de qualquer tarefa, por mais singela que fosse.
Havia nele uma jovialidade de quem projeta o futuro, não desfaz dos inimigos poderosos e vê presságios de liberdade no horizonte. Nada está dado e a luta não está perdida. E talvez a maior lição seja exatamente a alegria de fazer parte de algo que vai além de nós, que nos mantém vivos seja para criar um jornal, lutar contra a ditadura, educar os filhos e sonhar com uma sociedade mais justa. Essa é a inspiração que Zé Maria nos deixou.
Edição: Elis Almeida