Agronegócio sufoca todo e qualquer tipo de reforma agrária
Como fruto da luta renhida pela terra, o campesinato organizado conseguiu inscrever na Constituição Federal (CF) de 1988 o artigo 186, que enumera os requisitos indispensáveis para que a propriedade atenda à função social. O que já havia sido incluído no Estatuto da Terra, passa a ter a natureza jurídica de princípio fundamental.
Pelo artigo 186 da CF toda propriedade deve cumprir, simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei, quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser produtiva; b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio ambiente: não pode ser monocultura, por exemplo; c) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho: não pode haver desrespeito às leis trabalhistas; e d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores: participação dos trabalhadores no lucro da propriedade.
Agronegócio sufoca todo e qualquer tipo de reforma agrária
Para driblar o imperativo constitucional de desapropriar os latifúndios improdutivos e que não cumprem sua função social, o Estado brasileiro começou a usar uma série de subterfúgios. Um deles é estimular o uso de terras públicas e observar apenas os índices de produtividade e não os outros três critérios prescritos no art. 186 da Constituição Federal.
Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil, aprovou no Congresso Nacional a Lei 8.629/93, mantida pelos governos Lula, Dilma, Temer - o xerife do golpe de 31 de agosto de 2016 – e o inominável. Essa lei proíbe vistoria em fazendas que sejam ocupadas durante dois anos. Pior, os índices de produtividade estabelecidos, cujos parâmetros foram regulamentados pela Lei 8.629/93, permanecem desatualizados desde 1975, há 46 anos.
É óbvio que nos últimos 46 anos, com todo o aparato tecnológico usado na agricultura e pecuária, a produtividade aumentou em uma progressão geométrica. Por isso, a não atualização dos índices de produtividade é algo flagrantemente inconstitucional.
Apenas governo pode desapropriar terras e conceder indenizações
Ainda em 2009, em parceria com Delze dos Santos, no artigo MST: 25 anos de luta por reforma agrária, reconhecíamos que a ocupação de terras tornou-se a marca do MST. “É a forma mais eficiente, eficaz e necessária para forçar o governo a cumprir a sua parte na tarefa da reforma agrária. Desde a sua formação o MST aprendeu que somente ocupando a propriedade que não cumpre a função social conseguem os trabalhadores mover a máquina do governo e fazer um pouco de reforma agrária. O MST descobriu que reforma agrária não se espera de braços cruzados, mas se conquista na luta, inclusive com ocupações”.
Na luta pela terra não dá para ignorar o governo, pois “apenas o governo pode desapropriar terras, conceder indenizações, garantir crédito aos assentados, estabelecer uma política agrária e executá-la” (COMPARATO, 2003), ou, pelo menos, comprar fazendas em um regime de reforma agrária de mercado, o que é ceder aos interesses do capital, pois ao se burlar o estatuto constitucional da desapropriação de latifúndios para fins de reforma agrária se fortalece o mercado de terras, peça basilar no capitalismo brasileiro.
Para não desapropriar latifúndios improdutivos, índices de produtividade estão desatualizados a 46 anos
Boaventura Souza Santos (2007), por exemplo, em Para além do pensamento abissal, nos ajuda a entender como o pensamento moderno é basicamente um pensamento abissal e sacrificial, que justifica a desterritorialização. É abissal, porque cria abismos: um lado é o da existência, o outro é o da inexistência. Boaventura mostra como o Direito, ao legitimar a apropriação da terra como propriedade privada capitalista, tem sido uma arma brutal de sacrificar identidades. O sociólogo de Coimbra afirma que no campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso.
Nessa perspectiva, a luta pela terra e por reforma agrária é desqualificada pela ideologia dominante como algo falso e anacrônico, ao veicular o posicionamento dos detentores dos poderes econômico e político. A propaganda dos capitalistas que investem no campo para obter mais-valia à custa da expropriação do campesinato afirma como verdadeiro o agronegócio, projeto agropecuário que sufoca todo e qualquer tipo de reforma agrária e causa uma imensa devastação socioambiental.
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É prática corrente as relações de subordinação dos camponeses as grandes empresas agropecuárias do agronegócio, que, pelas condições materiais de enorme poder econômico submetem as famílias camponesas da região aos seus interesses.
Forçando um grande número de camponeses, quando pequenos proprietários, a praticarem o que se chama de ‘agronegocinho’, que é atrelar sua pequena propriedade rural e sua produção aos interesses do capitalista que está ao lado. Isso se faz por meio de financiamento para se plantar o que interessa aos empresários das monoculturas, através do arrendamento das pequenas propriedades, da venda de sementes com a oferta de técnicos para acompanhar a produção e, se consuma com a compra antecipada da produção.
Enfim, uma grande empresa do agronegócio, além de comprar a produção dos camponeses, acaba controlando as terras dos pequenos proprietários e reduzindo-os a simples serviçais do capital. Nesse contexto os órgãos ambientais via de regra são implacáveis com os camponeses que provocam alguma agressão ambiental.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas, e colunista do Brasil de Fato MG
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Edição: Elis Almeida