Para ser aceito pelos barões da mídia Lula precisa se render ao setor financeiro
Para vencer Jair Bolsonaro nas urnas vale tudo. Ou quase tudo. A mídia corporativa se rendeu ao cenário inevitável da única alternativa para impedir a reeleição do presidente, mas já começa a apresentar suas condições. Lula é melhor que o monstro no poder - não pelo tipo de poder que exerce, mas pela monstruosidade com que o faz -, mas desde que não seja Lula de verdade.
O pacto que vem sendo estabelecido desenha um candidato que, para ser aceito pelos barões da mídia, precisa escrever cartas e mais cartas ao povo brasileiro, se render a conversas civilizadas com o setor financeiro, acenar para o agronegócio, escolher um vice palatável (ainda que, contraditoriamente, sem sabor), mostrar indiferença respeitosa aos militares e, principalmente, não interferir no mercado. Um Lula antipetista.
O que parece contradição em termos, na realidade, é um método. É preciso esvaziar o conteúdo socialista do projeto do candidato petista, impedir que retome o crescimento econômico com distribuição de renda e a valorização dos recursos estratégicos. Que não tenha intenção de revisar os direitos extirpados pela reforma trabalhista em curso e que não reconstrua a porteira civilizatória no meio ambiente.
Lula não deve se meter em questões como ampliação das instâncias de democracia participativa, inclusão social e realinhamento diplomático independente, retomando o protagonismo em fóruns multilaterais e o respeito internacional. E, que não venha com essa conversa de valorização da mídia popular e controle econômico dos meios de comunicação. O que é liberalismo nos EUA por aqui é censura.
Pode defender o SUS, desde que não venha de novo com médicos cubanos, reforma psiquiátrica e direitos reprodutivos. O programa de imunização, a defesa de critérios epidemiológicos, a ação independente da Anvisa e a atenção básica são valores que não devem, entretanto, entrar em choque com os interesses do mercado e das corporações. Não é preciso avançar na reforma sanitária, um Mandetta quebra o galho.
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Em educação, manter a política de cotas nas universidades, mas anunciando a necessária revisão dessa estratégia, que já teria chegado ao seu limite. Em matéria de cultura, é preciso retomar a inspiração mercadológica da Lei Rouanet sem amarras ideológicas, mas deixar o Cultura Viva, as periferias e a experimentação mais para frente.
Enquanto todos os candidatos da chamada terceira via – essa ficção sabidamente inviável mas onipresente na imprensa – apresentam seus gurus, quase sempre êmulos de Paulo Guedes em arrogância, Lula deve esconder seus economistas. O fracasso das políticas neoliberais não mancham seus condutores; o sucesso dos governos petistas são sempre frutos de contingências e a cobrar autocrítica.
O debate em torno da reforma trabalhista deixou escancarado até onde vai a aceitação (nunca o apoio) de Lula. Há um entendimento mundial em torno da fragilização das condições de trabalho, com resultados sociais e econômicos preocupantes. O Brasil, por sua experiência, é chamado desde já para as conversas para o maior desafio do nosso tempo. Os editoriais dos jornalões preferem passar pano para Temer e Bolsonaro.
Subemprego, desemprego, precarização, retorno da miséria, perda da proteção social dos trabalhadores, enfraquecimento dos sindicatos e reversão do papel da justiça trabalhista em favor do capital. Essas são algumas das consequências estampadas no dia a dia do brasileiro, sob o argumento falacioso – e cruel – da defesa do emprego e da modernidade das relações trabalhistas.
Bico vira empreendedorismo, falta de vínculo se transforma em liberdade, fracionamento da jornada é sinal de ampliação de oportunidades, sindicatos são vistos como cartéis autolegitimadores. O novo trabalhador moldado pela reforma é informal, desamparado, em estado análogo ao da escravidão e isolado socialmente. Mas não é hora de um partido, ainda que de trabalhadores, mexer nesse vespeiro.
Aliás, é exatamente na seleção e profundidade do enfrentamento das questões mais importantes para o país que a imprensa deveria debruçar sua atenção. Enquanto a pauta for Centrão, terceira via, balões de ensaio e candidaturas inexpressivas, menos esclarecido estará o eleitor sobre temas essenciais, como desemprego, inflação, fome e segurança. A eleição de Bolsonaro foi uma fuga da política. A atual, precisa ser um reencontro com ela.
Esse deve ser o ritmo, daqui em diante, da cobertura das eleições pela autodenominada grande imprensa. Aceitar a candidatura de Lula como fruto de necessidade imperiosa da defesa mínima da normalidade democrática, nunca de uma escolha positiva. E, a cada dia, ir marcando o território com os limites que o candidato não deve ultrapassar, principalmente dos interesses financeiros e do mercado, o da comunicação incluído.
Será uma campanha que exigirá habilidade política, mobilização popular, capacidade de avaliar a cada momento a necessidade de ampliação de entendimento e avanço. E, principalmente, de não perder o vínculo popular e o projeto de construção de uma sociedade democrática e socialista, sem descuidar do realismo das alianças necessárias e dos compromissos históricos inegociáveis. Derrubar Bolsonaro é essencial, mas é apenas o começo.
*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida