O ano era 1987, o mês, abril...era uma tarde quente de uma sexta-feira.
Eu e alguns colegas do curso de farmácia da vetusta e histórica Escola de Farmácia de Ouro Preto, combinamos " matar" a aula de físico-química e ir pro "bar das coxinhas" famoso ponto de encontro dos estudantes e turistas, na rua Direita, centro histórico da ex-Vila Rica.
O programa era saborear as famosas coxinhas apimentadas e apetitosas, regadas a um bom papo, piadas e, claro, muita cerveja.
Vida de estudante, dinheirim pouco, vontade muita e aquela magia ouro-pretana com seus casarões, ladeiras, política e muita paquera... bons tempos inesquecíveis, quanto frisson!
No bar das coxinhas, papo e cervejas rolavam soltos, discutíamos de tudo um pouquinho, desde a última prova, o movimento estudantil, os deputados federais para a constituinte, as festinhas nas repúblicas... Enfim, não faltavam assuntos.
Só a Ouro Preto, berço da liberdade, histórica e jovial, para produzir uma situação dessa
Eu estava sentado próximo à janela do bar quando ao olhar pra ladeira da rua Direita, descendo a ladeira, uma figura majestosa, toda de branco, porte físico imponente. Andava como em câmara lenta.
Firmei as vistas, ele vinha descendo calmamente, estava ladeado por duas mulheres. Sim, era ele... o poeta da floresta, aquele que nos encantava com seus versos-manifestos em defesa da liberdade, da verdade, da floresta e da beleza humana.
Como iria confundir o autor da famosa obra "Estatutos do Homem"? E o icônico e libelo poema, “Faz escuro mas eu canto". E o excelente livro de poemas “Mormaço na floresta” que foi da minha cabeceira por muito tempo. Jamais esqueceria aquele semblante calmo, temperado.
Sim, era ele, o grande poeta amazonense Thiago de Mello, descendo a rua Direita. Não tive dúvidas e gritei para os colegas: moçada! Vejam quem vem ali, é ele, o poeta Thiago de Mello!!
Quem? Perguntou o Jacozim (o colega Alisson tinha esse apelido pela semelhança com o folclórico jogador de futebol que ficou famoso por tabelar com Diego Maradona e concluir com belo gol na partida de retorno do Zico ao flamengo).
“Deixe de estória rapaz, e você conhece este poeta? Deixe de conversa fiada”, emendou o Jacozi, que foi corroborado pelos colegas que riram da situação.
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Ah, pra quê. Senti-me desafiado. De pronto, disse a eles: "Aqui, vamos fazer o seguinte, vou lá pegar o autografo dele, se não for o poeta amazonense, pago essa conta sozinho. Mas se for ele, não pago nada, topam?
A moçada concordou desdenhando e o Jacozim avisou me alertando que estavam pedindo mais uma rodada de cerveja e de coxinhas.
Não vacilei, peguei caneta e papel na bolsa e fui ao encalce do poeta, seguro que seria bem recebido, afinal, a sensibilidade era marca conhecido do poeta ribeirinho do Amazonas.
Sai em desabalada carreira quase o abracei tamanha emoção. O poeta até assustou um pouco com a minha abordagem um pouco intempestuosa.
Atenciosamente, ouviu meu breve relato do pouco que conhecia dos seus poemas e sobre a aposta no boteco. Riu um pouco e disse: "Só a Ouro Preto, berço da liberdade, histórica e ao mesmo tempo jovial, libertária, para produzir uma situação dessa...uma aposta no boteco por conta de um humilde poeta", arrematou com seu jeito simples e sábio de ser.
Passou ao autógrafo, escrevendo: “Querido Rilke, cujo nome homenageia o grande poeta europeu, seja feliz e tenha sempre a alma libertária da bela Ouro Preto, viva a vida, viva a liberdade! Forte abraço, Thiago de Mello”. E me abraçou... quase chorei.
Agradeci e saí "desembestado" de volta ao bar, alegre e feliz tal uma criança presenteada com o que sonhou ganhar.
A moçada virou e revirou o papel valioso, foram a porta para "certificarem" que era ele mesmo. Eu, no meu contentamento, pedi mais uma cerveja e duas coxinhas por conta da turma e guardei aquele autógrafo no bolso.
O poeta Thiago de Mello ficou encantado na sexta-feira, dia 14 de janeiro. Vai poeta, aqui ficamos para continuar sua luta, em defesa da floresta, da liberdade, da verdade e da vida digna.
Aqui, continua fazendo escuro... é preciso sempre cantar.... como disse, a manhã virá, com certeza!!
Rilke Novato Públio é farmacêutico e diretor da Federação Nacional dos Farmacêuticos
Edição: Elis Almeida