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Religião: ópio ou libertação?

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"Teologia da Libertação dinamiza a dimensão libertadora do fenômeno religioso" - Imagem: 15ª Estação da Cruz da América Latina, de Adolfo Pérez Esquivel
Teologia da Libertação incorporou método materialismo histórico-dialético

Para reconstruirmos a sociedade a partir das vítimas dos escombros e da devastação causada pelo capitalismo, agronegócio e bolsonarismo, tornou-se imprescindível compreendermos de forma libertadora o fenômeno religioso: questão religiosa, religiosidade, ideologia da prosperidade, religião reduzida a autoajuda, intimismo espiritual, moralismos e fundamentalismos com fundo religioso, uso em vão do nome de Deus para enganar as pessoas, lucrar e acumular capital. 

O contexto religioso atual integra tudo isso. Há também, graças às forças de vida, fenômeno religioso libertador sendo vivenciado por milhares de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Pastorais Sociais, Movimentos Sociais e por pessoas que pertencem à religiões de matriz africana ou indígena. 

A sociologia da religião explica em grande parte como compreender o fenômeno religioso em geral, mas a Teologia da Libertação também é imprescindível para a compreensão da dimensão religiosa do campesinato na luta pela terra e do povo marginalizado nas periferias das cidades na luta por moradia, pão e dignidade. 

Marxismo vulgar considerou ‘religião como ópio do povo’

O filósofo e sociólogo da religião Michael Lowy afirma que “a emergência do cristianismo revolucionário e da teologia da libertação na América Latina (e em outras partes do mundo) abre um capítulo histórico e eleva novas e excitantes questões que não podem ser respondidas sem uma renovação da análise marxista da religião”. Não é mais possível considerar a participação de sujeitos cristãos na luta pela terra como se fosse uma exceção dentro de uma igreja conservadora e opressora. 

Para muitos “a morte do padre Camilo Torres, que tinha se unido à guerrilha colombiana, foi considerada um caso excepcional, ocorrida em 15 de fevereiro de 1966. Mas o crescente compromisso de cristãos – inclusive muitos religiosos e padres – com as lutas populares e sua massiva inserção na revolução sandinista claramente mostrou a necessidade de um novo enfoque”, diz Lowy.

Digo mais: sem a participação de milhares de pessoas cristãs teria sido muito difícil e teria tardado muito mais o nascimento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Partido dos Trabalhadores (PT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e de outros movimentos socioterritoriais que travaram a luta pela terra nas décadas de 1980 e 1990 e na primeira década do século XXI no Brasil. 

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A partir da Teologia da Libertação, muitos pensadores passaram a usar como método de análise da realidade o materialismo histórico-dialético, de Karl Marx, para entender as contradições da realidade, explicitar as causas das injustiças sociais e, assim, convocar os injustiçados para o engajamento em lutas de emancipação política, social e humana. 

Mártires da caminhada

Por assumir esse compromisso, muitas lideranças cristãs foram assassinadas. Cito alguns padres, freiras e inclusive um arcebispo: padre Camilo Torres, na Colômbia, dia 15 de fevereiro de 1966; padre Antônio Henrique Pereira Neto, auxiliar de Dom Hélder Câmara, em Recife, PE, dia 27 de maio de 1969; padre Rodolfo Lukenbein e o índio Borro Simão, na Terra indígena Merure, no Mato Grosso, dia 15 de julho de 1976; Santo Dias da Silva, em São Paulo, dia 30 de outubro de 1979; o arcebispo Dom Oscar Romero, em San Salvador, dia 24 de março de 1980; irmã Cleusa Rody Coelho, em Labrea, no estado do Amazonas, dia 28 de abril de 1985; padre Ezequiel Ramin, em Cacoal, em Rondônia, dia 24 de julho de 1985; padre João Bosco Burnier, em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, dia 11 de outubro de 1985; padre Josimo Tavares, em Imperatriz, no Maranhão, dia 10 de maio de 1986; padre Gabriel Maire, em Cariacica, no Espírito Santo, dia 23 de dezembro de 1989; 19 trabalhadores Sem Terra do MST massacrados brutalmente pela Polícia Militar do Pará, na “Curva do S”, em Eldorado dos Carajás, PA, dia 17 de abril de 1996; irmã Dorothy Stang, em Anapu, no Pará, dia 12 de fevereiro de 2005 etc. 

Em 34 anos, de 1985 a 2019, foram assassinados na luta pela terra no Brasil 1483 camponeses, uma média de 43,6 camponeses por ano. Quase todas estas lideranças camponesas eram pessoas religiosas, de uma fé libertadora. Sentiam impelidas a se comprometer com a luta pela terra também por uma motivação religiosa. A lista é muito grande, principalmente de leigas e leigos que se comprometeram com a caminhada das CEBs e abraçaram a luta pela terra na Comissão Pastoral da Terra (CPT), ou no MST, ou no Conselho Indigenista Missionário (CIMI) ou em vários outros movimentos camponeses socioterritoriais. Não dá para citar todos. 

Caiu no imaginário comum do marxismo vulgar que Marx seria ateu por considerar a ‘religião como ópio do povo’. Precisamos resgatar historicamente a evolução da compreensão da religião como ópio do povo. Quem a considerou assim, em qual contexto histórico e por quê? 

Fazendo sociologia marxista da religião, Michael Lowy coloca a questão religiosa como ópio, assim compreendida por vários pensadores antes de Marx. Diz ele: “A conhecida frase “a religião é o ópio do povo” é considerada como a quintessência da concepção marxista do fenômeno religioso pela maioria de seus partidários e oponentes.

O quão acertado é este ponto de vista? Antes de qualquer coisa, as pessoas deveriam enfatizar que esta afirmação não é de todo especificamente marxista. A mesma frase pode ser encontrada, em diversos contextos, nos escritos de Immanuel Kant, J. G. Herder, Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, Moses Hess e Heinrich Heine.

Por exemplo, em seu ensaio sobre Ludwig Borne (1840), Heine já a usava – de uma maneira positiva (embora irônica): “Bem-vinda seja uma religião que derrama no amargo cálice da sofredora espécie humana algumas doces, soníferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, esperança e crença”. Moses Hess, em seu ensaio publicado na Suíça, em 1843, toma uma postura mais crítica (mas ainda ambígua):“A religião pode tornar suportável [...] a infeliz consciência de servidão [...] de igual forma o ópio é de boa ajuda em angustiosas doenças””.

Religião no sentido de ópio aparece no artigo de Marx Sobre a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1844, onde Marx assim se expressa: “A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da dor real e o protesto contra ela. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como o é o espírito de uma situação sem espírito. É o ópio do povo”. Aqui nesta citação, ainda fala o jovem Marx, discípulo de Feuerbach, ainda neo-hegeliano.

Marx não tinha ainda desenvolvido o método do materialismo histórico-dialético, o que considera as relações sociais materiais na sua totalidade como sendo as que geram todas as representações espirituais, morais, jurídicas, etc. Marx não falava ainda de classes sociais e nem de luta de classes como sendo a espinha dorsal da sociedade capitalista.

Mas Marx já percebia o caráter contraditório e dialético da religião como suspiro ou protesto, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito.

Jesus histórico

Ao resgatar o Jesus histórico que viveu no nosso meio consolando injustiçados, incomodando os opressores da economia e da religião, e, acima de tudo, ensinando e testemunhando um jeito de conviver e de construir fraternidade real com justiça econômica, solidariedade social e partilha de poder político, a Teologia da Libertação dinamiza a dimensão libertadora do fenômeno religioso. O que passa por compreendermos a íntima relação que existe entre as dimensões espiritual e social do Evangelho de Jesus Cristo. 

Nisto acreditamos e por isto lutamos, pois sabemos que muitas formas religiosas são idolátricas e abusam do nome de Deus para fins escusos. 


 

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas, e colunista do Brasil de Fato MG

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* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

Edição: Elis Almeida