Minas Gerais

Coluna

Por uma aliança campo-cidade para salvar a Casa Comum

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A agroecologia – uma proposta de modo de vida que combina saberes científicos e tradicionais – nos ensina que precisamos encurtar os circuitos entre quem produz e quem consome alimentos - Foto: João Zinclar
A alimentação pode abrir trincheiras para discussões políticas mais amplas

Na coluna anterior, "Minas Gerais: terra em transe", abordei as calamidades que assolam nosso estado e que têm correspondentes no restante do país e do Planeta. Episódios críticos têm se repetido com frequência cada vez maior, sinal de que vivenciamos uma emergência climática. Seus efeitos sobre vidas e territórios são múltiplos e desiguais, mas uma coisa é certa, precisamos rever nossa forma de produzir e distribuir riquezas e interromper as relações de superexploração do trabalho e da natureza. 

Um caminho com grande potencial para essa transformação é a aproximação entre o campo e a cidade. A pandemia nos lembrou de algo que costumeiramente esquecemos: somos parte da natureza. Integramos um ecossistema de relações interdependentes. Por isso mesmo, não faz sentido tentar conservar um meio ambiente intocado e supostamente distante enquanto seguimos depredando a natureza urbana e os territórios da agropecuária e da mineração que nos cercam. Ao invés de soluções estáticas, precisamos de saídas complexas, sistêmicas.

Proponho exercitarmos essa aproximação entre campo e cidade pela via da comida. O tema da alimentação tem chamado a atenção das pessoas, seja em razão da carestia, seja por interesses nutricionais, gastronômicos e culturais. 

O chamado sistema agroalimentar hegemônico (produção, transformação, distribuição, comercialização e descarte de alimentos e associados) é essencialmente baseado em grandes distâncias. Os alimentos viajam pelo território nacional e atravessam oceanos, à mercê do interesse de grandes empresas multinacionais. Nossa dieta alimentar está cada vez mais pobre e homogênea, isto é, estamos perdendo a riqueza da diversidade de nossa cultura alimentar (que para nós mineiros é algo precioso). Nota-se que essa é a tônica do sistema agroalimentar hegemônico. Tem gente fazendo diferente e precisamos fortalecer essas práticas. 

A agroecologia – uma proposta de modo de vida que combina saberes científicos e tradicionais – nos ensina que precisamos encurtar os circuitos entre quem produz e quem consome alimentos. Comprar direto da agricultura familiar e camponesa em feiras e mercados locais, por exemplo, é uma via possível. Ao fazer isso, contribuímos para a circulação-distribuição da renda e reduzimos as distâncias físicas percorridas pelos alimentos. Reduzimos também o hiato cognitivo e afetivo que nos separa da terra. 

Experiência concreta

No contexto de retorno da fome, agravado pela pandemia, vimos emergir uma série de iniciativas solidárias de entrega de cestas básicas nas periferias. Uma delas, da qual participo, buscou incorporar as preocupações acima descritas e conectar produtores de alimentos a famílias das cidades em situação de grande vulnerabilidade. 

A Aliança Campo-Cidade Contra a Fome na Região Metropolitana de Belo Horizonte fez sua primeira entrega de cestas em maio de 2021. Foi formada pelo encontro de um conjunto de coletivos e organizações de Belo Horizonte: Casa Socialista, Movimento Bem Viver MG, ColetivA, Pontos de Luta, Marcha Mundial das Mulheres e Cio da Terra. De maio em diante veio constituindo uma rede de solidariedade com pessoas que doam tempo e dinheiro para comprar e montar as cestas de alimentos, famílias das periferias urbanas e famílias agricultoras que fornecem alimentos frescos e não perecíveis por meio de associações e cooperativas. 

As entregas mensais até dezembro somaram mais de 20 toneladas de alimentos, destinadas a dez comunidades da Grande BH, incluindo famílias migrantes de haitianos e bolivianos. A opção de seguir apoiando as mesmas famílias na cidade se mostrou acertada e possibilitou o atendimento de demandas específicas: os imigrantes solicitaram abacate e banana da terra e as famílias com crianças pequenas demandaram leite. Igualmente, manter a regularidade com os fornecedores da agricultura familiar é uma garantia de demanda e uma segurança de renda.

Outro aspecto de destaque na Aliança é a inclusão de produtos de higiene e limpeza. Doações da Marcha Mundial das Mulheres e de outras companheiras voluntárias viabilizaram a entrega mensal de absorventes e outros produtos comumente ausentes das cestas de alimentos. 

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Em dezembro nos desafiamos a fazer uma cesta especial de Natal. Atendemos aos pedidos de mais de 150 crianças, que escreveram cartinhas para o Papai Noel e foram amadrinhadas por parceiros da Aliança. Juntamente com os presentes, as 154 cestas entregues incluíram carne de porco caipira, ovos caipiras, arroz, feijão, açúcar mascavo, canjiquinha, fubá, farinha de mandioca, leite em pó, café, goiabada e frescos (banana nanica e prata, laranja, maça, cenoura, inhame, cebola, batata doce). Todos os alimentos são livres de agrotóxicos, cultivados agroecologicamente e provenientes da agricultura familiar e camponesa. 

Após esses meses de trabalho e acompanhamento das comunidades, a pergunta que fica é: como transformar essa ação solidária em trabalho de base? Alguns dos caminhos possíveis incluem a promoção de intercâmbios entre as comunidades atendidas; a realização de oficinas de hortas e plantas medicinais; o diálogo sobre a cultura alimentar a partir de preparos tradicionais; a troca de conhecimentos, ferramentas e apoio entre todos os elos da rede. 

A experiência da Aliança Campo-Cidade Contra a Fome é mais um indicador de que comer é um ato político. Sinaliza como a alimentação pode abrir trincheiras para discussões políticas mais amplas, motivadas por perguntas como "você sabe de onde vem esse alimento?", "sabe quem cultivou?", "por que seu preço aumentou tanto?". Essas e outras indagações, combinadas aos ensinamentos freireanos, podem polinizar a solidariedade e fertilizar o terreno da ação política. 

 

Luiza Dulci é economista e doutora em sociologia. Integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e constrói o Movimento Bem Viver MG

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

Edição: Larissa Costa