Não se trata de defender a democracia em tese, mas na vida real
As chamadas “instituições” nunca falaram tanto em defesa da democracia e da Constituição Federal. Nesta semana, na abertura dos trabalhos dos poderes Judiciário e Legislativo, ouviu-se o reiterado discurso, de ministros do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Superior Eleitoral, dos presidentes do Senado e da Câmara e do PGR, entre outros, que apelavam para o papel indelegável de guardião da legalidade e do Estado de Direito. Até aí, tudo esperado.
No entanto, o que chama atenção nas manifestações das autoridades é que há um inimigo claramente identificado, o presidente Jair Bolsonaro, que vem atacando, minando e desconstruindo as instituições, por meio de atos, palavras e omissões. E um alentado pacote de estupidez. Por isso, não se trata de defender a democracia em tese, mas na vida real. Presente em algumas dessas solenidades, o presidente fez cara de paisagem enquanto era frontalmente acusado por sua ação destrutiva.
Bolsonaro é um rematado covarde, que só reage contra os mais fracos
O que se estabelece é um jogo relativamente hipócrita. É sempre mais fácil falar do que fazer. Ainda que seja possível identificar, sobretudo no Supremo Tribunal Federal, algum grau de independência e atitude, quase sempre o discurso tem sido mais forte que a ação. Sem o Supremo, certamente, estaríamos em situação ainda pior, como no caso da pandemia, mas nem por isso é possível perceber o cumprimento integral de suas atribuições de retificação e freio da escalada fascista do governo federal.
Recado ao presidente, mas sem ação
Na abertura dos trabalhos do Judiciário, dia 1º, sem a presença mesmo virtual de Bolsonaro, representado pelo vice Hamilton Mourão, o presidente do STF, Luiz Fux foi taxativo: não há mais espaço para ações contra o regime democrático e para violência contra as instituições públicas. Foi um recado direto ao presidente, que se estendeu no detalhamento da pauta de julgamentos prevista para este ano.
O magistrado anunciou que o tribunal deve mirar a estabilidade democrática e a preservação das instituições políticas em ano eleitoral, na revitalização da economia e na proteção das relações contratuais de trabalho e na moralidade pública. Destacou a questão da pandemia, com a decisão de contribuir para o que chamou de concretização da saúde pública. Ou seja: uma aposta na ciência e na gestão técnica e racional do setor.
Reação às ameaças do presidente têm ficado muito aquém do necessário
Na mesma ocasião, o PGR Augusto Aras, que tem dado excelência ao conceito de engavetador geral da República, chegou a falar em estímulo à diversidade, tolerância e paz social. Defendeu a liberdade de opinião, como se não vivesse num dos países que mais decai no ranking da liberdade de imprensa em todo o mundo, com destaque para a perseguição e ação violenta do presidente da República contra jornalistas. Sem falar no estímulo à rede de mentiras próxima ao núcleo duro do poder, o que caberia a ele denunciar.
Tanto Fux quanto Aras podem estar certos no que dizem. No caso do presidente do STF, é necessário destacar a força de suas palavras e a dureza da retórica, quase personalizada, dirigida ao mandatário da nação. No entanto, eles ocupam lugares muito distintos da denúncia, da crítica ou da defesa de valores universais. Eles não devem clamar pelo papel das instituições, eles, de certa forma, “são” as instituições.
Como Bolsonaro é um rematado covarde, que só reage contra os mais fracos, parece ter ficado relativamente cômodo se bater contra seus horrores em audiências públicas, jogando sempre para frente, quase como um alerta, a possibilidade de ação concreta. No caso do Supremo Tribunal Federal ou do Ministério Público, a crítica se dá por atos objetivos, processos, investigações e inquéritos. O que, em certa medida, tem ficado muito aquém do necessário. Há um gozo em afrontar o monstro que parece anistiar uma atitude mais consequente. Ninguém vai poder dizer que Fux não alertou. Só que o alerta, muitas vezes, é dirigido ao espelho.
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No dia seguinte, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidentes da Câmara e do Senado, conduziram a abertura do ano legislativo, com a presença de Fux e de Jair Bolsonaro, num raro encontro dos três poderes. O presidente desfiou suas prioridades e os líderes das casas legislativas apresentaram em baixo-relevo suas condições. Lira preferiu apontar para a economia e para a questão dos combustíveis. Pacheco foi mais estratégico e defendeu a ciência, as vacinas e a democracia. Por trás dos dois pronunciamentos, as demandas inconfessas de um ano eleitoral.
Legislativo blinda o presidente
Arthur Lira teve o desplante em defender que o legislativo é fiador da estabilidade, quando na verdade tem exercido o papel duplo de blindar o presidente em relação aos pedidos de impeachment, ao mesmo tempo em que comanda o atacadão dos interesses do Centrão no orçamento. Pacheco se veste do estilo contido e elegante para propor uma pauta de valores, como se não fosse responsável pelo processo que levou exatamente a seu esgarçamento.
Os dois trataram de liberdade de imprensa e desinformação, como se não passassem por eles os projetos capazes de barrar esses descaminhos. Mais uma vez, em exercício repetido de desfaçatez, Pacheco lançou sobre o vazio a responsabilidade pelos atos antidemocráticos em curso no país, tendo a seu lado o tutor desse processo. Há momentos em que o pretenso equilíbrio nada mais é do que a sedimentação da covardia em leniência. Bolsonaro podia ouvir tudo em paz, sabia que falavam dele, mas não com ele.
Barroso entrega, foi golpe
Na mesma semana, Luís Roberto Barroso, ministro do STF e presidente do TSE, teve antecipado um artigo que deve ser publicado na Revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, o Cebri. No texto, ele defende que o real motivo do impeachment da presidente Dilma Rousseff foi a falta de sustentação política, e não as pedaladas fiscais, uma mera justificativa formal. De acordo com Barroso, Michel Temer assumiu com uma agenda liberal que não foi adiante em razão de sucessivas crises de corrupção.
Ele lembrou ainda que a Câmara dos Deputados, por duas vezes, impediu instauração de ações penais contra Temer. Se a análise não traz novidade, pelo menos conclusão merece cuidado. Para o magistrado, mesmo não havendo crime de responsabilidade, não houve golpe, já que o processo se deu nos limites da lei, ainda que, como ele mesmo destaca, com objetivos que precedem a legalidade em direção a interesses claramente postos pelos agentes políticos e econômicos.
É mais um caso em que a palavra substitui a ação, em que a crítica anistia o autor de responsabilidade passada (por que não denunciou a farsa?) ou futura (afinal, pelo menos pôs a boca no trombone) e em que as instituições são tomadas como horizontes teóricos, não palco de atitudes. O Supremo tem feito parte do seu trabalho, mas tem passivo na escalada que levou Bolsonaro ao poder.
O Legislativo pode arrogar liberdade e independência, se jactar de ter organizado CPIs e atuado em conjunto com a sociedade em alguns momentos. Mas tem se portado como o que de pior a história das duas casas dispõe, em termos de blindagem do presidente, clientelismo e condução de interesses de grupos de poder.
Ficou tão fácil falar mal de Bolsonaro como tem sido difícil impedir sua ação autocrática e destrutiva. O que tem sobrado são palavras. E faltado ações. Menos discursos, artigos e declarações e mais atitude de ofício. Motivos não faltam.
Edição: Elis Almeida