Pronunciamento de Chico Buarque teve o efeito que ele esperava
A recente declaração de Chico Buarque de que não cantará mais o samba-canção “Com açúcar e com afeto” porque ele reforça o machismo e o poderio do homem sobre a mulher, é uma jogada dialética.
Ele compôs a referida música a pedido de Nara Leão, que na década de 1970 era interprete de músicas de protesto, de seu grupo de amizade, como João do Vale, Tom Jobim e Chico Buarque.
Só para ilustrar o grau de envolvimento de Nara Leão com a repressão do regime militar, em 1976, ela estava em Diamantina, em companhia de seu marido Cacá Diegues, que dirigia a produção do filme “Chica da Silva”. Eu a vi em frente a uma loja de instrumentos musicais e quando me dirigia a ela, um amigo me avisou que a cantora estava sendo seguida por um detetive do DOPS, visando as pessoas com as quais ela falava.
O pronunciamento de Chico Buarque teve o efeito que ele esperava. Ele não canta, mas a música está gravada e há muitas versões disponíveis na internet que podem ser acessadas com facilidade. A letra diz o seguinte: Com açúcar e com afeto / Fiz seu prato predileto / Pra você parar em casa / Qual o que / Com seu terno mais bonito / Você sai não acredito / Quando diz que não se atrasa. Continuando a história, a letra diz que o homem vai trabalhar, mas se dispersa na malandragem e, já tarde da noite, chega em casa com as mesmas conversas de sempre e a mulher releva.
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O cancioneiro carioca era muito recorrente em exaltar ou reprovar essa situação de mulher passiva e homem impostor. Em um samba de 1937 de Roberto Robert, intitulado “Abre a janela” a mulher só é amada porque é formosa, isto é, vale pela beleza, pela forma física. O homem a chama na janela para dizer que vai para a farra. Abre a janela, formosa mulher / E vem dizer adeus a quem te adora / Apesar de te amar como sempre amei / Na hora da orgia eu vou embora / Depois da orgia, voltarei para a sua companhia. Essa letra é um verdadeiro escarnio sobre a mulher.
O ricaço que quer manter fiel e disponível uma concubina, ou bela amante, diz que se ela fosse fiel, teria uma vida de luxo e status de madame, como na marchinha de carnaval “Aurora”, de Mário Lago. Se você fosse sincera / ô ô ô ô Aurora / Veja só que bom que era / ô ô ô ô Aurora / Um lindo apartamento / Com porteiro e elevador / Com ar refrigerado / para os dias de calor /Madame antes do nome / Você teria agora / ô ô ô ô Aurora. Também de Mário Lago é o samba-canção “Amélia” símbolo da mulher ideal para o “bon-vivant”, inteiramente passiva. Aquilo sim, é que era mulher / Às vezes passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que comer.
A situação narrada por Aluisio Azevedo, em “O Cortiço”, romance de 1890, mostra o português João Romão submetendo Bertoleza, sua amante, a trabalho desumano, no afã de se enriquecer. Esse é o ideal do malandro que prevaleceu até a primeira metade do século XX.
Na atualidade, temos ainda em cena o homem-massa, vulgar por excelência, sempre influenciado e estimulado por outras pessoas e pelos meios de comunicação. Na impossibilidade de ter suas próprias ideias apela para a violência como forma de solução. Não tolera a liberdade e o relativo poder de sua companheira. Quando não a espanca covardemente a persegue-a e mata.
Antônio de Paiva Moura é docente aposentado do curso de bacharelado em História do Centro Universitário de Belo Horizonte (Unibh) e mestre em história pela PUC-RS
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*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida