No Brasil a crítica contundente de Marx contra o protestantismo pode ser aplicada
Na obra A Ideologia Alemã, de 1846, Marx e Engels analisam o fenômeno religioso como realidade social e histórica produzida materialmente e condicionada pelas relações sociais. Depois disso, poucas vezes Marx se dedicou a escrever sobre religião.
Várias interpretações tacanhas sobre a afirmação ‘religião é ópio do povo’ têm distanciado e gerado uma montanha de preconceitos mútuos entre cristãos e socialistas. Convém recordar que a afirmação de Marx não quer dizer que toda e qualquer religião, independentemente de sua constituição e incidência na história, é intrinsecamente alienadora. Marx jamais quis afirmar isso. Ele teve a coragem de denunciar as religiões históricas que andavam de braços dados com os poderes opressores.
Michael Lowy, no artigo Marxismo e religião: ópio do povo?, faz um resgate histórico imprescindível para a compreensão da sociologia marxista da religião. Diz ele: “apesar de seu pouco interesse pela religião, Marx prestou atenção na relação entre protestantismo e capitalismo. Diversas passagens de O Capital fazem referência à contribuição do protestantismo para a acumulação primitiva de capital – por exemplo, por meio do estímulo à expropriação de propriedades da Igreja e campos comunais. Nos Grundrisse, formula – meio século antes do famoso ensaio de Max Weber! – o seguinte comentário significativo e revelador sobre a íntima associação entre protestantismo e capitalismo. ‘O culto do dinheiro tem seu ascetismo, sua auto-abnegação, seu autosacrifício – a economia e a frugalidade, desprezo pelo mundano, prazeres temporários, efêmeros e fugazes; o correr atrás do eterno tesouro. Daqui a conexão entre o puritanismo inglês ou o protestantismo holandês e o fazer dinheiro””.
Verdadeira fé denuncia a superexploração a que a maioria está submetido
A sintonia entre Marx e Weber neste ponto se verifica. “A semelhança – não a identidade – com a tese do Weber é surpreendente, mais ainda uma vez que o autor da Ética Protestante não pode ter lido esta passagem”, já que os Grundrisse de Marx foram publicados pela primeira vez somente no ano de 1940.
Não podemos simplesmente importar ideias de fora e nem do passado. Cumpre, por exemplo, ressaltar que no Brasil há uma significativa participação de integrantes de várias igrejas protestantes construindo a Teologia da Libertação e por causa dela estão comprometidos com as lutas por justiça social e, especificamente, com as lutas sociais por terra, moradia, pão, meio ambiente e a superação do capitalismo com todas as discriminações causadas pelo sistema do capital, que é máquina de moer vidas.
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No Brasil, atualmente, a crítica contundente de Marx contra o protestantismo pode ser aplicada, guardadas as devidas e evidentes diferenças, ao neopentecostalismo que campeia no meio das massas via igrejas empresas propagandeando a “teologia” (ideologia) da prosperidade, que, por sinal, é questionada com ardor no livro de Jó, na Bíblia.
Ao vivenciar uma experiência humana que o sacode visceralmente, Jó descobre que Deus, que é mistério de infinito amor, não o ama enquanto ele é rico, sadio e tem família, mas que mesmo perdendo riqueza, saúde e família, é no reino da gratuidade que o amor de Deus acontece. Deus não nos abandona jamais. Assim, Jó refaz sua experiência de Deus na vida: “antes eu te conhecia só por ouvir dizer, mas agora meus olhos te veem” (Jó 42,5).
Ao analisar as implicações da ética protestante no desenvolvimento do capitalismo, Weber afirma que o espírito protestante “teve o efeito de liberar o enriquecimento dos entraves da ética tradicionalista, rompeu as cadeias que cerceavam a ambição de lucro, não só ao legalizá-lo, mas também ao encará-lo (no sentido descrito) como diretamente querido por Deus”. Weber afirmou que a ética protestante impulsiona a produção de riqueza privadamente como fruto do trabalho e, pior, exorta ao trabalho exaustivo, sem descanso.
Esfolados no inferno, em busca de um pedacinho do céu na terra
A classe dominante com sua política econômica neoliberal que propõe incluir os excluídos pelo consumo e padres e pastores da “teologia” da prosperidade estão solapando a luta pela terra e pela moradia e a luta por direitos sociais. Porque veiculam autoajuda e valorização da pessoa individualmente.
Dizem que prosperar individualmente, isoladamente, tornando-se rico é bênção de Deus. E, quem mais oferece ofertas e paga religiosamente o dízimo, segundo certos pastores e padres (neo)pentecostais, será mais abençoado e terá crescimento econômico próspero. Buscando um ‘jeitinho brasileiro’, as massas acorrem aos templos (neo)pentecostais – parte deles está no interno da igreja católica também – por meio dos que encenam curas e alardeiam a realização de milagres no sentido de mágicas sobrenaturais.
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O pagamento de dízimo, de ofertas e a compra de CDs, revistas, DVDs e muitos outros ‘penduricalhos’ não são sentidos pelos fiéis como espoliação, mas como caminho para bênçãos pessoais, bênçãos para uns e não para todos, o que revela fé em um deus que discrimina, fé em um ídolo.
Assim, nas igrejas pentecostais (as principais igrejas pentecostais criadas no Brasil, a partir de 1910, são a Congregação Cristã no Brasil, a Igreja Evangélica Assembleia de Deus, a Igreja do Evangelho Quadrangular, a Casa da Bênção, a Igreja Pentecostal Deus é Amor e a Igreja Pentecostal O Brasil Para Cristo, mas há centenas de outras), e nas neopentecostais (as principais igrejas neopentecostais – as que mais crescem ultimamente - criadas no Brasil, a partir de 1976, são a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra e a Igreja Apostólica Renascer em Cristo) se privatiza a fé e se usa e abusa do nome de Deus para lucrar e acumular capital sem medidas.
A verdadeira fé religiosa denuncia a superexploração a que a maioria dos trabalhadores estão submetidos na atual fase do capitalismo, que transforma a vida no mundo, aqui e agora, em um ‘inferno’.
Esfolados no ‘inferno’ do mundo sob os ditames do capital, multidões estão buscando refúgio em igrejas (neo)pentecostais, que são consideradas ‘um pedacinho do céu na terra’ ou um oásis no mundo de violência do capital.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas, e colunista do Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida