Reinventar a esperança e lembrar que as mudanças são possíveis
Por Marcelo Gomes da Silva
Por que comemorar o Bicentenário da Independência? Se fizermos uma busca na comunidade acadêmica teremos as mais elaboradas respostas, fruto de estudos profundos, pesquisas empíricas e formulações das mais diversas.
Peço licença ao campo da investigação histórica, mas quero aproveitar esse espaço, jornalístico, para tratar de sensações, sentimentos, visões de mundo e intuições cotidianas de um sujeito que habita esse território chamado Brasil, uma nação inventada que completará 200 anos.
Remeto a invasão e invenção oficial que marca o ano de 1822, como de fundação do Estado Nação. E ao seu contraponto, no tempo, que é 2022.
É preciso trazer conforto para o enfrentamento que estamos vivenciando
Percebemos-nos, hoje, imersos a uma áurea autoritária, uma energia carregada, um desânimo coletivo e um adoecimento (não apenas pandêmico) que causou em nós a sensação de que o Brasil entristeceu.
Aqui destaco um primeiro ponto sobre a relação disso com a história. A narrativa sobre a formação do povo brasileiro foi cunhada na imagem de um povo alegre, cordial e outros atributos. Por mais paradoxal que pareça, a visão que sempre foi criticada, agora, nos parece necessária como forma de resistência. Como diria Luiz Antônio Simas, não se faz festa porque a vida é boa!
A busca pela “essência” do brasileiro, que luta, mas é alegre, que sofre, mas também resiste, que cria, inventa e reinventa, pode nos trazer conforto para o enfrentamento que estamos vivenciando.
A memória sobre o país, seu povo e a invenção da nação, nos conforta/desconforta e nos dá energia para o presente. Digo isso porque a história sempre é chamada para cumprir a função do “fio” que liga os pontos em meio ao caos. A visão religiosa, cristã e ocidental é histórica. Apoiamo-nos em um salvador e repetimos o ritual do sacrifício daquilo que nos ensinou. Vislumbramos, a partir da historicidade da sua existência, a salvação. Mesmo as religiões afro-brasileiras, também remetem à ancestralidade e na relação histórica com aqueles um caminho de aprendizado, energia e fonte para suportar os dias e os tempos difíceis.
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Na psicanálise, parece-me também existir uma relação com a história, neste caso, nossa própria história individual, como um ponto que ajuda a compreender nossas subjetividades existenciais, nossos conflitos e, neste aspecto, a busca pelo conforto, aceitação, cura, ou outra coisa que cada um busca no processo.
Olhar para nosso “interior histórico”
À história é delegado o papel de esclarecimento do sujeito, de criador da consciência, da militância e atuação política.
Neste aspecto, a efeméride “Bicentenário da Independência” possibilita uma ampliação do debate sobre o que somos e o que podemos ser. Permite que discutamos questões que pertencem à longa duração, que coloquemos discussões presentes no nosso cotidiano como algo estrutural, reflexo da invenção do Brasil, do país possível que foi descartado ao longo do processo.
Podemos olhar a história “de baixo”, “a contrapelo”, do “rés do chão” ou de várias outras formas. Olhar, na esperança de ver uma saída. Olhar, a partir de nosso estado de espírito, de nossa subjetividade, de nossa relação com esse mundo inventado pelo longo processo brasileiro.
A visão a partir de uma temporalidade alargada nos permite ter a dimensão exata de nossos limites e possibilidades. A sensação é de que estamos em “estado de choque”! Perdidos, não conseguimos nos conectar nessa “comunidade imaginada”.
Precisamos resgatar o “fio”, tecer a rede que nos une no imaginário histórico da resistência. Neste aspecto, a efeméride “Bicentenário da Independência” é fundamental para nos reencontramos com nós mesmos. Passar a história a limpo, coletivamente, sobre o que nos tornamos.
Na fronteira derradeira, do avanço sobre as terras indígenas, quilombolas, no avanço sobre o que restou de direitos trabalhistas, sociais, de dignidade, no aumento da carestia da vida e da desigualdade, da fome, da miséria, é preciso olhar, cuidadosamente, para nossa ancestralidade resistente.
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É preciso olhar profundamente para o nosso “interior histórico” e redescobrir as possibilidades perdidas. Reinventar a esperança, lembrar que o tempo não para, que as mudanças são possíveis.
A história tem seus limites, mas também nos escancara possibilidades. Nestes 200 anos de Brasil inventado, parecemos coadjuvantes tristes assistindo “bestializados” os desmontes e desmandos.
Somos sujeitos sociais e históricos, inventados, construídos, submetidos a processos diversos. A história nos confortará, em um primeiro momento, para que possamos agir e construir outra realidade.
Marcelo Gomes da Silva é professor da UESC/BA e membro do Portal do Bicentenário
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida