Minas Gerais

NORTE DE MINAS

Artigo| Comunidade quilombola de Croatá (MG) sofre com a perseguição por fazendeiros

Famílias estão assentadas em barracos de lona, aguardando as águas recuarem

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Após representantes de Walter Arantes e seus jagunços expulsarem a comunidade de dentro do território, quilombolas acamparam do lado de fora, local onde os animais da comunidades já estavam - Foto: Reprodução Instituto DH

Os moradores da Comunidade Tradicional Quilombola, Pesqueira e Vazanteira de Croatá, na região de Januária, Norte de Minas Gerais, começaram o ano de 2022 vivenciando os efeitos das enchentes no Rio São Francisco, devido às fortes chuvas, e ações intimidatórias do fazendeiro da região.

Após terem que se deslocar para regiões mais altas do território, os quilombolas foram expulsos pela terceira vez, por jagunços de fazendeiro e pela Polícia Militar, do seu próprio território, no dia 5 de fevereiro. Toda a ação ocorreu momentos antes da montagem do novo acampamento em local que tinham a posse, onde já realizavam a criação de animais de grande porte e cultivo de hortaliças para o próprio sustento.

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Na ocasião, após intensa negociação junto aos policiais, dois moradores da comunidade foram conduzidos ao batalhão para o registro de ocorrência. Ambos, atendidos pelo Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH-MG), assinaram um Termo de Compromisso de Comparecimento ao Juizado Especial Criminal, marcado para o dia 27 de abril de 2022.

Enquanto isso, a Polícia Militar continuou a vigília das famílias e um caminhão do fazendeiro foi deslocado até o local para retirada dos moradores do acampamento. Temendo que o conflito ficasse violento, de forma coletiva, a comunidade decidiu ceder à pressão armada militar que arbitrariamente os expulsaram – mais uma vez, sem ordem de despejo e sob influência do “gerente” da fazenda. São mulheres, homens, crianças e idosos obrigados a sair do seu próprio território tradicional.

Além de fugir das enchentes, a escolha do local para o acampamento não foi por acaso. Com o anúncio de retorno das crianças às aulas presenciais, os pais e responsáveis decidiram buscar a melhor localização para facilitar o acesso das crianças ao transporte escolar e outros serviços básicos, como proteção e saúde. No entanto, ao expulsar a comunidade, a polícia ainda ameaçou chamar o Conselho Tutelar, alegando que as famílias estariam com os menores ao relento.

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Diante dessa situação de injustiça, as crianças foram encaminhadas para a casa de parentes, mas os demais moradores continuam acampados e aguardam providências das autoridades responsáveis, uma vez que, no entendimento da comunidade, não cabe à Polícia Militar de Januária atuar nesse caso, por não ter devida competência legal.

Nesse sentido, a atuação arbitrária da Polícia Militar em conjunto com latifundiários tem sido uma ação recorrente no histórico das comunidades tradicionais quilombolas e em Croatá não é diferente. Os atores têm atuado com o apoio do Estado, via agentes da segurança pública, para criminalizar as famílias como “invasoras” de terras, mas  são famílias que apenas desejam viver com dignidade e seguindo seus modos de vida no seu território de origem, tendo, portanto, seu direito à moradia garantido.

Situação das famílias quilombolas

Em função das chuvas intensas em todo o estado de Minas Gerais neste início de 2022, a Comunidade Tradicional Quilombola, Vazanteira e Pesqueira de Croatá encontra-se totalmente alagada, uma vez que o território faz parte da vazante do Rio São Francisco e em tempos de cheia as águas sobem repentinamente.

Segundo os moradores, a cheia deste ano é pior desde a década de 1980, quando a comunidade também sofreu os efeitos das enchentes e, consequentemente, teve suas terras invadidas logo em seguida, por fazendeiros.

No momento, as famílias quilombolas encontram-se assentadas num ponto próximo à rodovia na região em barracos de lona aguardando as águas recuarem. O município tem dado o suporte básico com alguns suprimentos, mas os quilombolas afirmam que a Defesa Civil do município recusou a enviar o carro de abastecimento de água por julgar que a situação era de caráter privado e envolvia conflito com fazendeiro. Depois de várias denúncias dos quilombolas nas redes sociais, a prefeitura regularizou o atendimento.

As lideranças quilombolas consideram a situação vivenciada humilhante. “Ter que ficar de fora do seu próprio território, exposto ás pessoas que passam pela rodovia, com xingamentos preconceituosos, e com risco de alguém nos agredir é uma situação horrível. Hoje, sinto a dor do meu avô que morreu e teve as terras do Quilombo do Rio do Peixe disputadas no tiro”, relata liderança em entrevista. Atualmente, o Quilombo do Rio do Peixe, que pertencia ao avô de uma das quilombolas, pertence ao Walter Arantes, fazendeiro conhecido na região pelas disputas e apropriação das terras tradicionais quilombolas.

Mesa de diálogo

Temendo que o conflito pudesse resultar em ações violentas, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) e outras entidades de apoio, como o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), solicitaram às autoridades do estado a realização da Mesa de Diálogo, instância criada para mediar e solucionar conflitos de natureza socioambiental e fundiária.

Cerca de 15 dias após a realização da Mesa que contou com a presença de diversas autoridades da Justiça, como a Defensoria Pública, Ministério Público; representantes do município de Januária; profissionais de órgãos ambientais e de regularização fundiária; além das partes envolvidas no conflito – a Comunidade Quilombola de Croatá recebeu mais um processo do fazendeiro Walter Arantes, alegando porte de armas por parte dos comunitários.

Tal processo reflete a posição irredutível de Walter Arantes e seus advogados durante a Mesa de Diálogo, marcada por falas racistas e que tem o objetivo desqualificar a Comunidade Tradicional na tentativa também de criminalizar os quilombolas como invasores do território que por direito, cultura e tradição os pertencem. Também, para uma das lideranças quilombolas, a Mesa de Diálogo provou que Walter e seus advogados não querem diálogo.

A luta pelo território tradicional

A Comunidade Quilombola Tradicional, Vazanteira e Pesqueira de Croatá tem suas origens às margens do Rio São Francisco.

Parte de suas terras pertencem à União e o processo de demarcação do território não foi finalizado. No entanto, a Comunidade é certificada pela Fundação Palmares como Comunidade Remanescente de Quilombo e mantém processo no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que contém o relatório antropológico, elaborado pelo Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (Niisa), da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e com registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR).

O relatório antropológico é o primeiro passo para emissão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que se mantém totalmente paralisado devido à política de governo de total exclusão da temática e perseguição declarada aos povos tradicionais, resultando em cortes orçamentários que inviabilizam a continuidade do processo, resultando em conflitos como o da Comunidade Quilombola de Croatá e latifundiários, como Walter Arantes.  

A luta pela regularização do território do Croatá vem desde 2013, junto à Secretária de Patrimônio da União (SPU), que chegou a emitir uma nota técnica declarando a área indubitável da União. No Incra, o processo de regularização do território quilombola tramita desde 2018.

Na região, o conflito com Walter Arantes, fazendeiro, latifundiário, empresário, dono das redes de supermercados EPA, Mineirão e BH, é marcadamente direcionada à criminalização das comunidades quilombolas visando, inclusive, ampliar as cercas de sua propriedade para terras públicas da União, terrenos marginais do Rio São Francisco e áreas reconhecidamente quilombolas, mas que, por morosidade e omissão do Estado, ainda não possuem o título oficial do processo de regularização do território tradicional.

Na Justiça, dois processos de reintegração de posse já foram movidos pelo proprietário na tentativa de intimidar a comunidade de Croatá. Além disso, a Polícia Militar da região atua descaradamente em favor de Walter Arantes, agindo na maioria das vezes como “seguranças particulares” da propriedade do fazendeiro, mesmo com os processos tramitando na esfera federal. Esse posicionamento, inclusive, foi fortemente criticado pelas autoridades da Justiça durante a Mesa de Diálogo.

Sendo assim, a percepção é que a Polícia Militar, ao atender o fazendeiro, desconhecendo os direitos das comunidades e a existência dos processos envolvendo uma dos maiores latifundiários do estado de Minas Gerais (preso na Operação Lava Jato), ao invés de conduzir a situação pela proteção e direitos dos cidadãos, age em prol de interesses privados.

De acordo com o boletim de ocorrência, mesmo os policiais tendo escutado e registrado que os animais da comunidade estavam na área de posse da comunidade, resolveram atender a demanda do fazendeiro expulsando os quilombolas que somente fugiam das enchentes e das chuvas.

Ameaças aos modos de vida

A região do Norte de Minas, em específico nas Barrancas do Rio São Francisco, é marcada por uma longa história de expulsão de povos tradicionais e de grilagem institucionalizada de terras da União.

O estilo de vida de seus antepassados, com profundos vínculos territoriais que incluem áreas vazanteiras (alagáveis, com lagoas marginais, berçários de peixes do Rio São Francisco), sempre esteve ameaçado por grileiros, que, desde o tempo de antigos, utilizam da força bruta e das relações institucionais para expulsar os povos tradicionais originais destes territórios.

Por alguns anos, parte desse povo resistiu nas periferias das cidades, mas, o sustento, a comida e o trabalho sempre esteve atrelado ao rio e a essas áreas de vazantes. Atualmente o contexto de ataques aos direitos dos povos tradicionais tem cada vez mais diminuído as ações institucionais para regularização das terras tradicionais. Tal cenário tem gerado violência local que se manifesta em ameaças por funcionários do fazendeiro e grileiros que se espalham no Norte de Minas Gerais.

Atuação do PPDDH-MG

O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH-MG), executado pelo Instituto DH, por meio de sua equipe técnica, vem acompanhando as diversas situações de violação de direitos vivenciadas pela Comunidade Tradicional Quilombola desde 2017.

A proposta do PPDDH-MG é acionar a rede de proteção do município e do Estado – sociedade civil, poder público e Judiciário – com o objetivo de mediar e acionar mecanismos e instâncias institucionais para promover a aplicação e execução das políticas públicas para pessoas e comunidades que sofrem sistematicamente violações de direitos humanos.

No contexto da Comunidade Tradicional Quilombola de Croatá, o PPDDH-MG, tem intensificado as denúncias no que tange a demora do processo de regularização do território e as constantes ameaças vivenciadas pelos defensores. Além disso, a equipe realiza o acompanhamento jurídico e das ações de proteção realizadas pelos órgãos de saúde, educação e assistência social.

Várias entidades locais atuam no sentido de dar visibilidade e apoio institucional à situação da Comunidade de Croatá, entre elas, o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), a Associação Comunitária Quilombola Pesqueira e Vazanteira Croatá (ACQPVC) e o Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil. Como encaminhamento de apoio, serão realizadas diversas ações de comunicação para ampliar o debate sobre a necessidade e a importância de regularização dos territórios quilombolas por toda Minas Gerais e o país.

 

Pablo Abranches é jornalista do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal