No Brasil, há um tipo de igreja para os bairros nobres, outro tipo para o povo de periferia
O filósofo Antonio Gramsci (1891-1937) foi um dos primeiros marxistas que tentou entender o papel contemporâneo da Igreja e o peso da cultura religiosa sobre as massas populares. Admirador do socialista cristão francês Charles Péguy, Gramsci escreve: “lendo Nossa Juventude, de Péguy, embebedamo-nos com esse sentimento místico religioso do socialismo, de justiça que impregna tudo. […] Sentimos em nós uma nova vida, uma crença mais forte, afastada das ordinárias e miseráveis polêmicas dos pequenos e vulgares políticos materialistas”.
Em Cadernos do Cárcere, Gramsci reconhece a dimensão utópica das ideias religiosas: “a religião é a utopia mais gigante, a mais metafísica que a história jamais conheceu, desde que é a tentativa mais grandiosa de reconciliar, em forma mitológica, as reais contradições da vida histórica. Afirma, de fato, que o gênero humano tem a mesma ‘natureza’, que o homem […] como criado por Deus, filho de Deus, é, portanto, irmão de outros homens, igual a outros e livre entre e como outros homens [...]; mas também afirma que tudo isto não pertence a este mundo, mas sim a outro (a utopia). Desta forma, as ideias de igualdade, fraternidade e liberdade entre os homens […] estiveram sempre presentes em cada ação radical da multidão, de uma ou outra maneira, sob formas e ideologias particulares”.
Tendo como experiência concreta o fenômeno religioso da Igreja Católica na Itália nas primeiras décadas do século 20, Gramsci entendeu também a diferenciação interna na igreja – atualmente, podemos dizer nas igrejas – segundo uma variedade ideológica e também segundo as diferentes classes sociais. Segundo Gramsci, “toda religião [...] é realmente uma multiplicidade de distintas e, às vezes, contraditórias religiões: há um catolicismo para os camponeses, um para a pequena burguesia e trabalhadores urbanos, um para a mulher e um catolicismo para intelectuais”.
:: Leia mais notícias do Brasil de Fato MG. Clique aqui ::
O mesmo texto bíblico lido em igrejas de periferia, de bairro nobre ou em um acampamento ou assentamento de reforma agrária é interpretado de formas muitas vezes até contraditórias.
No Brasil, atualmente, podemos dizer parodiando Gramsci que há um tipo de igreja para os bairros nobres, outro tipo para a pequena burguesia e outro para o povo de periferia. E há, como referido acima, as igrejas (neo)pentecostais que com grande inserção nos meios midiáticos usam e abusam do nome de Deus para surrupiar muito dinheiro do povo aflito encurralado pelas injustiças sociais. Isso se faz via teologia/ideologia da prosperidade com missas e cultos de cura, privatizando a fé e reduzindo Deus a um quebra galho para resolver problemas pessoais que são frutos da superexploração promovida pelo capitalismo.
De forma semelhante a Engels, o marxista Ernst Bloch, ao analisar o fenômeno religioso, distinguiu duas correntes sociais opostas: uma religião ópio do povo e outra subversiva. “Por um lado, a religião teocrática das Igrejas oficiais, ópio dos povos, um aparelho mistificador a serviço dos capitalistas; por outro, a secreta, subversiva e herética religião dos albigenses, husitas, de Joaquim de Flores, Thomas Munzer, Franz von Baader, Wilhelm Weitling e Leon Tolstoi”, concluiu Bloch.
Se fosse hoje, Bloch provavelmente citaria expoentes da teologia da libertação, tais como Rubem Alves, Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff, José Comblin, Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga, Hugo Assmann, frei Betto, Marcelo Barros, Benedito Ferraro, Jon Sobrino, Carlos Mesters, Pablo Richard etc.
Porém, diferentemente de Engels, Bloch reconhece que a religião pode veicular uma consciência utópica, pela sua força crítica e antecipadora. Para o autor, “em suas manifestações contestadoras e rebeldes, a religião é uma das formas mais significativas de consciência utópica, uma das expressões mais ricas de O Princípio Esperança. Através de sua capacidade de antecipação criativa, a escatologia judaico-cristã – universo religioso favorito de Bloch – contribui para dar forma ao espaço imaginário do ainda não-existente”.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
O filósofo e sociólogo marxista Lucien Goldmann (1913-1970) propõe a renovação dos estudos marxistas da religião. Ele fala em crença religiosa e crença marxista: “ambas têm em comum o rechaço do puro individualismo (racionalista ou empirista) e a crença em valores trans-individuais – Deus para a religião, a comunidade humana para o socialismo. Em ambos os casos, a crença está apoiada em uma aposta – a aposta pascaliana na existência de Deus e a marxista na libertação da humanidade – que pressupõe o perigo do fracasso e a esperança do êxito”.
O que separa os cristãos socialistas e os socialistas ateus é o caráter supra-histórico da transcendência religiosa. Para Goldmann, “a crença marxista é uma crença no futuro histórico que o ser humano cria por si mesmo, melhor dizendo, que devemos fazer com nossa atividade, uma “aposta” no êxito de nossas ações; a transcendência de que é objeto esta crença não é nem sobrenatural nem trans-histórica, mas sim supraindividual, nada mais, mas tampouco nada menos”.
Os adeptos da Teologia da Libertação acreditam na força humano-divina e intra-histórica e não em um Deus extra-história. Não há transcendência em contraposição à imanência, terreno das relações humanas, mas há transdescendência, que é o divino no humano e em toda a biodiversidade. “O espírito (ruah, em hebraico) de Deus está nas águas”, de acordo com Gênesis. O sopro divino (ruah) “agitava, revolvia, sagazeava, bailava, tocava, acariciava, abraçava, envolvia, chocava” as águas. Javé respirava nas águas. Namorava as águas, talvez possamos dizer. Trata-se de algo intimamente ligado às águas. Agitava de dentro para fora. Ruah e água não são duas realidades. Trata-se da mesma realidade sob ângulos diferentes. São “carne e unha”, inseparáveis.
Em Gênesis 1,2b “água” é símbolo da realidade. Tudo é água, pois água está em todo ser vivo. Logo, não podemos entender água apenas no sentido físico. O autor bíblico quer dizer que o espírito de Deus está em tudo, permeia e perpassa tudo. Em tudo está uma aura de divino, de sagrado. Existe água não só nos rios, mas em tudo há água, em todos os corpos, em todos os seres vivos. A terra é um grande ser vivo, chamada por muitos de Gaia. Todos os seres vivos integram, mantendo identidades próprias, em uma grande sinfonia, o ser maior: o planeta Terra. Pelo exposto, compreendemos Religião como utopia gigante, porém com concretização dos mais variados jeitos e até contraditórios, às vezes.
As vídeo-reportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas, e colunista do Brasil de Fato MG.
--
Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa