As eleições francesas demonstram os riscos do “frente-amplismo” como um fim em si mesmo e deveriam servir de alerta para o Brasil. Mais uma vez, a direita enfrentará a extrema direita no segundo turno: o presidente Emmanuel Macron (27,8%) vai enfrentar Marine Le Pen (23,1%). Jean-Luc Mélenchon (22%), o principal candidato da esquerda, ficou de fora por pouco mais de 400 mil votos. Mais uma vez, teremos um candidato do “espectro democrático” enfrentando uma candidata com programa “iliberal” calcado em ataques à democracia liberal e discurso xenofóbico e “antissistema”.
Essa é a terceira vez que o segundo turno das eleições francesas terá um candidato da direita contra um candidato da extrema direita. Em 2017, Le Pen enfrentou Macron; em 2002, seu pai, Jean-Marie Le Pen, enfrentou o conservador Jacques Chirac. Aqui importa a evolução. Em 2002, todo o espectro de centro e esquerda se uniu em favor de Chirac que levou com 82,2% dos votos. Em 2017, Macron levou o segundo turno por 66,1%. As pesquisas mostram um empate técnico entre Macron e Le Pen para o segundo turno daqui a duas semanas.
O governo de Macron foi marcado por reformas neoliberais que reduziram direitos trabalhistas, pelo aumento da brutalidade policial e por uma tentativa de reforma da previdência que foi parada pelas ruas. Ao longo do seu governo, as ruas foram tomadas pelos “coletes amarelos”, que começaram os protestos por causa do aumento de impostos sobre a gasolina que afetava principalmente a população rural. Ao mesmo tempo, o “progressista” Macron moveu seu discurso para a direita, incorporando elementos mais nacionalistas numa tentativa de apelar para o eleitorado simpático a Le Pen.
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O empate técnico entre Macron e Le Pen nas pesquisas é resultado do contraste entre seu governo neoliberal e a disposição do povo francês de proteger as instituições republicanas. Por que defender “a República” se tudo o que recebemos em troca são quatro anos de piora na qualidade de vida e um deslocamento ainda maior da política para a direita? Cada um desses chamados urgentes para “salvar a República” se torna mais fraco, pois o eleitorado aprendeu que de onde menos se espera é que não sai nada mesmo. Nesta eleição, as pesquisas indicam que os eleitores de Mélenchon devem se dividir em três grupos aproximadamente iguais: Le Pen, Macron e as abstenções devem levar um terço dos votos da esquerda.
Torcemos para que o neoliberalismo com leves tons progressistas de Macron consiga vencer a extrema direita. Mas podemos especular que no próximo ciclo eleitoral a tarefa se torne impossível. Na verdade, os resultados desse fim de semana já indicam o caminho alternativo. Existe um amplo eleitorado que continua a votar na esquerda fragmentada e nos verdes. Se estivesse unido, seria o suficiente para tirar a extrema direita do segundo turno. A alternativa para os franceses seria justamente a frente ampla que levou a esquerda chilena de volta ao poder. Frente ampla sim, mas com um programa econômico e de valores morais de contraponto à extrema direita. Um frente-amplismo vazio de mera “defesa da democracia” que não entrega melhoras concretas para a população pode até funcionar uma vez, mas terá sempre retornos decrescentes. Cada rodada será percebida como uma fraude, o que afasta cada vez mais os eleitores. Uma parte acaba comprando o discurso da extrema direita.
Alerta para o Brasil
A crescente dificuldade da direita francesa de conter a extrema direita deve servir de alerta contra o canto de sereia do “frente-amplismo” que tem ganhado força no Brasil. Segundo esses comentaristas, é necessário superar as diferenças programáticas e construir uma frente ampla em defesa da democracia. O programa político da frente ampla deveria então focar na defesa das instituições e de valores democráticos, deixando de lado questões econômicas e morais que possam causar desunião na frente. Mais importante, segundo esses comentaristas, a frente ampla deveria evitar qualquer questão que possa afastar os eleitores propensos a votar no candidato iliberal. Assim, não poderíamos falar de aborto, de direitos trabalhistas ou sobre mudanças no teto de gastos. Se fizermos isso, correríamos o risco de entregar a eleição de bandeja para a extrema direita.
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Ao contrário da França, ou também da Hungria, aqui a frente ampla é liderada pela esquerda. Isso é um trunfo. Nossa frente ampla tem o potencial de apresentar uma visão positiva para o país, não apenas a “defesa da democracia” abstrata. Mais do que isso, a visão do futuro que temos para oferecer se baseia em uma memória de tempos melhores do passado. As exigências de ainda mais “pluralismo” (isto é, ainda mais concessões para a direita) não trarão muito retorno para a frente ampla liderada por Lula. A máquina de mentiras bolsonarista inventará o que for preciso, não estamos dando “mais munição” para eles. O presidente Lula já trouxe para a frente ampla todos aqueles que estão dispostos a defender a democracia brasileira, incluindo antigos oponentes.
Mais “pluralismo” produzirá apenas uma coalizão sem sal, incapaz de inspirar nos eleitores um sentimento positivo sobre um projeto de país. Se seguirmos a rota desse “pluralismo” desmedido, em breve, defenderemos um Sérgio Moro contra o “mal maior” bolsonarista. Concessões programáticas são parte do processo, mas não podemos nos silenciar sobre coisas básicas do direito das mulheres ou de trabalho e remuneração dignos. A esquerda deve continuar sua luta – e suas críticas – para manter o caráter progressista da frente ampla. Podemos refletir sobre como modular as mensagens para o eleitorado indeciso, mas sem abrir mão do conteúdo.
Pedro Faria é economista e historiador. É pesquisador de pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais.
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa