Autonomia é ‘norma própria’ e heteronomia ‘norma de outro, de fora’
Emancipação. O que é isto?
Emancipação não é algo que se faça por decreto e nem de uma só vez no atacado. É algo que envolve a vida toda. Um processo permanente que implica desvencilhar-se de todas as formas de alienação, resgatar e cultivar o que há de melhor no ser humano e na história.
Nos processos emancipatórios podem ocorrer vários tipos de emancipação: a) emancipação política; b); emancipação econômica; c) emancipação ideológica; d) emancipação cultural; e) emancipação religiosa; f) emancipação humana etc.
Trabalhador assalariado, trabalha de graça para o capitalista
A emancipação humana busca envolver todas as outras emancipações. Em História da Pedagogia, Franco Cambi apresenta a seguinte definição para emancipação:
“Emancipação é libertação, é tornar-se autônomo, é constituir-se na luta como sujeito, é consciência de uma complexa dialética entre alienação e “redenção”, e é categoria que, com a ética, a política e o direito moderno, inerva também a pedagogia, a qual, teoricamente, se reconhece como guiada, sempre, por um desejo de emancipação (do sujeito, da sociedade) e, praticamente, age (ainda que de forma às vezes contraditória: até conformadora e conformista) para realizá-la”.
Norma própria
Etimologicamente, Autonomia é ‘norma própria’ e heteronomia ‘norma de outro, de fora’. Uma pedagogia de emancipação humana passa por pedagogia da autonomia, conforme ensina Paulo Freire:
“O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”. Autonomia não se delega a outro. “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. [...] A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. [...] Uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade”.
Uma pessoa emancipada se gere por relações autônomas e não heterônomas. Emancipar-se exige (com)viver, (inter)agir, trabalhar e criar se guiando por ‘normas’ próprias, o que implica desvencilhar-se das normas de outro, seja especificamente o patrão que compra a força de trabalho do trabalhador pagando apenas o mínimo para que o trabalhador não morra e possa continuar servindo-lhe como mercadoria e produzindo acima de tudo mais-valia; seja obedecendo às normas e leis do modo de produção capitalista imposto pelo capital e pelos capitalistas.
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“O trabalhador assalariado só tem permissão de trabalhar para sua própria vida, isto é, para viver, desde que trabalhe de graça um determinado tempo para o capitalista. Por isso, também para aqueles que, juntamente com ele, consomem a mais-valia”.
Processos emancipatórios
Aspectos emancipatórios acontecem quando um sem-terra torna-se um Sem Terra (pertencente a um sujeito coletivo, há um movimento), um sem-casa torna-se um Sem Casa, quando descobre que terra é mais do que terra, que casa é mais que casa, que não há um destino predeterminado, mas que ele pode fazer história como sujeito e não está fadado a ser objeto e oprimido sem poder superar a opressão.
Algo de emancipação acontece também quando se compreende que “a terra conquistada na luta deixa de ser apenas terra, para ser terra com pessoas buscando encontrar o melhor jeito de trabalhar e de viver nela, o que exige a preocupação com um conjunto bem maior de dimensões humanas, e com um tipo de organização que dê conta delas”, como nos diz Caldart. Algo de emancipação ocorre quando se descobre que “terra é dignidade, é participação, é cidadania, é democracia”, como nos diz Balduíno.
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A terra e a moradia conquistadas apontam para emancipação, porém, se, após a conquista da terra, os Sem Terra recaírem no ‘agronegocinho’, a luta pela terra deixa de ser caminho e jeito de caminhar para emancipação humana. Se após a conquista da moradia acontece um processo de acomodação das pessoas aos ditames do capitalismo: individualismo e apenas luta restrita dentro dos ditames do sistema do capital, o que se conquistou corre-se o risco de se perder gradativamente.
“A luta pela terra não está simplesmente em terra por terra, pois a terra é algo sagrado que é muito mais do que terra”, dizia o grande lutador Alvimar Ribeiro dos Santos, agente de pastoral da CPT/MG.
Para os capitalistas x para os Sem Terra
Para os capitalistas, a terra, as águas, as sementes, o ar, as matas, a justiça e o direito são recursos que devem ser explorados sem limite conforme seus interesses econômicos egoístas.
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Para os camponeses Sem Terra, esses elementos da natureza são dádivas e base da vida, não têm preço e jamais podem ser mercantilizados.
Sobre a terra não há uma visão unívoca, pois há muitas formas de se ver a terra. O indígena vê a terra de uma forma, o camponês, de outra forma; o afrodescendente, de outra forma; o fazendeiro, de outra forma; os executivos das empresas do agronegócio veem a terra como mercadoria da qual se pode extrair commodities e, acima de tudo, ampliar a acumulação do capital.
Liberdade
É preciso emancipar de tudo que nos aprisiona, aliena e reduz a nossa humanidade para sermos pessoas livres e autônomas, construtoras da nossa própria história, fazendo a diferença no nosso jeito de conviver e lutar, deixando marcas históricas para que as pessoas após a nossa existência terrena possam dizer: “o mundo se tornou melhor, porque lutadoras e lutadores do povo nele viveram fazendo história”.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Referências
BALDUÍNO, Dom Tomás. Conferência de abertura do II Simpósio Nacional de Geografia Agrária / I Simpósio Internacional de Geografia Agrária. In: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs. ). O Campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, p. 19-25, 2004.
CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 4ª Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
Edição: Elis Almeida