Minas Gerais

CRIME DA SAMARCO

Artigo | Parece bonito, mas não funciona

Ao impor fogão a lenha pré-moldado, Renova desrespeita modos de vida e viola direitos das famílias atingidas de Mariana

Mariana (MG) | Brasil de Fato MG |
Fogão a lenha tradicional na casa de uma família atingida de Mariana - Foto: Lucas de Godoy

Falta de aquecimento do forno e da serpentina, descanso de lenha pequeno, canos da serpentina entortando com o calor do fogo e retorno excessivo de fumaça. Essa é a realidade de quem já convive com o fogão a lenha pré-moldado imposto como única opção de reparação desse item pela Fundação Renova. Essencial para a retomada dos modos de vida das famílias atingidas pela barragem de Fundão em Mariana, o fogão a lenha tradicional faz falta.

Dona Maria Auxiliadora Arcanjo Tavares, moradora de Paracatu de Cima – que após a devastação causada pelo mar de rejeitos teve sua moradia reconstruída – conta a angústia sofrida com o “novo” fogão. Ela tinha uma tomada ao lado do descanso de lenha, o que foi o início de um incêndio na cozinha. As consequências poderiam ter sido graves.

“Parece bonito, mas não funciona”, desabafa Maria Auxiliadora, que teve o fogão pré-moldado “consertado” três vezes desde a instalação. No entanto, o fogão continua apresentando os mesmos defeitos.

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No processo de reparação do direito à moradia, a Fundação Renova impõe os fogões pré-moldados – encontrados prontos em lojas de construção – como única opção de devolver os fogões à lenha para as famílias atingidas

Embora a Renova – instituição mantida pelas mineradoras Samarco, Vale e pela BHP Billiton –, justifique que esse modelo atende às normas técnicas de segurança, eficiência dos materiais e possui controle de qualidade e garantia de uso, na prática isso não se cumpre.


Fogão pré-moldado com defeitos instalado na casa de dona Maria Auxiliadora, em Paracatu de Cima / Foto: Arquivo Cáritas MG

Os relatos das famílias atingidas e as visitas técnicas da Assessoria realizada pela Cáritas MG para acompanhamento das obras comprovam os diversos problemas presentes nesse tipo de fogão, que, além de ineficientes, colocam as pessoas que o utilizam em risco de acidentes.

Sebastião Celestino Arcanjo (Tatão), irmão de dona Maria Auxiliadora e também morador de Paracatu de Cima, é um construtor experiente na arte de fazer fogões a lenha tradicionais. Conhecedor do funcionamento desse elemento essencial das cozinhas mineiras, seu Tatão diz que o fogão imposto pela Renova não suporta o modo de uso dado pelas famílias atingidas.

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“Esse fogão pré-moldado não aguenta o fogo de lenha que o povo coloca na roça”, afirma seu Tatão. “Fogão pré-moldado é uma vez ou outra para colocar fogo. Fogo o dia inteiro e serpentina nele vai estourar é todo”, completa.

Imposição e desrespeito

O rompimento da barragem de Fundão devastou vidas e comunidades inteiras, são muitas as lutas travadas em busca da reparação dos danos causados desde 2015.  A indignação e a exigência pela construção dos fogões a lenha tradicionais são legítimas e faz parte de uma gama de processos que devem ser considerados para a reparação integral, para a garantia da retomada dos modos de ser e de viver dessas pessoas.

O relato de seu José do Nascimento de Jesus (Zezinho), atingido de Bento Rodrigues, dá um breve panorama dessa realidade. “O crime da Samarco tirou tudo que é de direito, que é uma família viver bem, feliz, em paz, tranquila. Tirou da gente aquele jeito de fazer queijo, tirar leite, tratar de vaca, de galinha, colher as plantas, tudo colhido em casa. Hoje a gente vive na cadeia”, conta. “Para quem tinha uma vida de roça igual a gente tinha, eu fico triste, chateado e tenho todo direito”, lamenta seu Zezinho.

Em nota técnica, a Cáritas MG, assessoria independente das pessoas atingidas de Mariana, evidencia que retomar a construção de fogões a lenha nas comunidades atingidas é restabelecer parte da identidade cultural, tão ameaçada até aqui. É atestar a qualidade e a garantia na feitura dos fogões pelos próprios atingidos, além de gerar renda e inclusão de mão de obra local nas comunidades.

Importante lembrar que o direito à moradia digna, reconhecido como inalienável, humano e universal, é parte do direito a um padrão de vida satisfatório e inclui como um dos critérios a adequação cultural. Em 1991, o Comitê dos Direitos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas (ONU) informa que “a moradia não é adequada se não respeitar e levar em conta a expressão da identidade cultural”.

Além da imposição de um sistema construtivo que ignora as heranças culturais das famílias atingidas, muitas delas são surpreendidas durante as visitas às obras do reassentamento coletivo de Bento Rodrigues, momento em que visualizam o fogão a lenha pré-moldado já instalado nas casas. As famílias não têm acesso a informações importantes sobre o funcionamento e a manutenção desse tipo de fogão, nem antes e nem depois da sua instalação. Essa postura expressa o desrespeito que as mineradoras e a Fundação têm para com as pessoas atingidas.

Cansados de receberem respostas negativas da Fundação Renova, alguns atingidos resolveram construir seus fogões a lenha moldados in loco com recursos próprios e mão de obra da comunidade. Na maioria dos casos, os construtores são membros ou amigos da família com experiência em fazer e usar o fogão tradicional.

A Fundação Renova insiste em violar os direitos das famílias atingidas ao longo do processo de reparação. No caso dos fogões pré-moldados, ela não reconhece que as pessoas atingidas são dotadas de todo e qualquer direito de escolha do tipo de fogão que melhor atenda as suas necessidades.

É fundamental que as vozes dessas pessoas sejam ouvidas, que se cumpra as exigências dos moradores sobre a escolha do método construtivo dos fogões a lenha, se respeite o direito de escolha em relação ao formato, mão de obra, tamanho, material de construção e acabamento dos fogões.

Bruna Oliveira, Gabriela Andrade e Ellen Barros são integrantes da Assessoria Técnica Independente à população atingida de Mariana Cáritas MG.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa