Há que se tomar iniciativa, desmontar o cenário de chantagem e retomar o busão para a cidade
A crise do transporte coletivo em Belo Horizonte, ainda longe de ter uma solução satisfatória, se encaminha para o encerramento de um dos seus capítulos. Depois de cinco meses de hesitação e negociação, a proposta de subsídio ao sistema de ônibus foi apresentada como projeto de lei (PL) à Câmara dos Vereadores e vai correr em tramitação acelerada, com previsão de ser aprovada já no começo de junho.
A proposta prevê um subsídio de 237,5 milhões de reais, dividido em 12 parcelas que se estenderão até março de 2023. Do valor total, 95,4% são destinados às empresas de ônibus e apenas 4,6% aos permissionários do transporte suplementar, apesar de sua participação no total de passageiros e de viagens do transporte coletivo ser maior. O subsídio exige que as concessionárias aumentem a quantidade de viagens diárias realizadas em 30% em relação a março de 2022. Esse valor ainda é 15% abaixo das viagens realizadas antes da pandemia.
Ou seja, nos encontramos em uma situação em que um aporte imenso de recursos vai garantir um transporte pior do que era antes da pandemia. É o subsídio traiçoeiro – piora e melhora o transporte ao mesmo tempo, dependendo do ponto de observação.
Como isso aconteceu?
Uma conjuntura de crise nacional do transporte, com perda de demanda ao longo dos anos e acelerada pela pandemia, somada a um choque inflacionário nos insumos, cujos custos são previstos para serem pagos apenas pela tarifa do usuário, são a principal razão. Some a esse arranjo um dos piores contratos de concessão do país (sim, o de Belo Horizonte), que entregou todos os instrumentos de gestão e de fiscalização para as empresas, retirando-os da esfera pública, fazendo com que o acionamento de suas cláusulas só ocorresse em favor da iniciativa privada.
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Adicione ainda uma prefeitura que, desde as eleições de 2020, se colocou em acordo com os empresários de ônibus e não fez nenhuma medida de enfrentamento real do interesse das empresas de ônibus. E chegamos até aqui: empresas controlando totalmente a oferta e a programação do transporte, cortando todas as viagens que não se pagam, retirando ônibus dos horários noturnos, finais de semana e superlotando os ônibus nos outros horários. Em suma, uma chantagem explícita à prefeitura e à população, que foi usada de refém pelas empresas de ônibus. O resgate só poderia ser o subsídio.
O PL que agora tramita na Câmara dos Vereadores é melhor que o apresentado em janeiro, isso é fato. Ambos assumem que o atual contrato é letra-morta, mas o projeto atual pelo menos estabelece contrapartidas para o repasse de recursos.
Entretanto, como frisamos, as condições são rebaixadas: aumentar o quadro de horários em um nível que a frota não tenha que ser ampliada, retomar viagens noturnas para a média do trimestre novembro de 2019/janeiro de 2020, justamente os meses de férias. Além disso, o valor do subsídio é totalmente arbitrário e não está vinculado a nenhum custo de referência de quanto se gasta para realizar as viagens na cidade.
Abdicou-se deliberadamente desse cálculo e de qualquer critério de transparência nesse sentido. Outro problema é que, mesmo a “punição” prevista, caso não se cumpram as contrapartidas, é branda, e prevê apenas o não-repasse de recursos do mês seguinte, quando poderia haver multa, intervenção nas empresas, entre outros.
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Por fim, não houve nenhum acordo ou sinalização de que as empresas de ônibus irão tirar a faca do pescoço da população até a aprovação do subsídio. Ou seja, daqui até meados de junho, as viagens continuarão ilegalmente cortadas, ocorrendo apenas nos horários de pico, a bel prazer dos empresários e para o desespero da população.
Algo de bom
No fim, o que essa proposta de subsídio traz de positivo é o que aponta para o futuro. Em primeiro lugar, mesmo em um momento de crise econômica e sem criar nenhuma fonte extra de receita, já se pode partir de um piso de 240 milhões de reais do poder público para se pensar um transporte coletivo de qualidade. Com instrumentos de gestão públicos e pagamento por serviço, vinculados a um custo de referência, esse montante pode fazer mágica.
Disso decorre o segundo ponto: é evidente e urgente a reformulação do contrato. Todas as partes a querem, inclusive as empresas de ônibus, mas com interesses divergentes. Pelos termos do acordo firmado entre prefeitura, Câmara e empresários, há o prazo de um ano para isso. Para os movimentos sociais que acompanham o caos do transporte há anos, é hora de pressionar pela criação e fortalecimento de instrumentos de controle público e popular do transporte, combater o poder econômico e político dos empresários, criar instâncias de real participação e deliberação popular.
O primeiro passo para isso é a reativação do Conselho Municipal de Mobilidade Urbana e a criação de uma comissão, com ampla participação popular, para a revisão do atual contrato de transporte coletivo. Qualquer passo fora dessa direção demonstrará, mais uma vez, o compromisso da prefeitura com o interesse empresarial em detrimento da população. Há que se tomar iniciativa, desmontar o cenário de chantagem e retomar o busão para a cidade.
André Veloso, economista e integrante do movimento Tarifa Zero BH
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa