Não há como superar tal cenário sem mobilização social e sem políticas públicas
Que Brasil é este que, em pleno século 21, com tantos avanços científicos e tecnológicos, parece ter entrado errado no veículo da história? Ao invés de avançar, regride em pleno ano do bicentenário da independência. Voltamos aos tempos das caças às bruxas, dos navios negreiros, dos açoites, das noites sangrentas e da fome.
A barbárie e o fascismo tomam conta do país e do mundo. O cuidado com a vida está cada vez mais banalizado e somos impulsionados a fazer perguntas, apontar e denunciar que, do jeito que está, não há presente e tampouco futuro.
O Brasil perdeu o rumo e nos acostumamos as perguntas sem respostas. Quem matou e quem mandou matar a vereadora Marielle Franco (PSOL) e o motorista Anderson Gomes? Mas não queremos só saber, queremos também denunciar que lutar pelos Direitos Humanos incomoda os poderosos e os endinheirados.
Onde estão o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, desaparecidos desde domingo, 5 de junho de 2022? E não basta “descobrir”, temos que denunciar a negligência e o permanente ataque aos direitos indígenas por parte do governo federal. Garimpeiros, madeireiros, narcotraficantes, pescadores e caçadores, se sentem respaldados e donos daquelas terras do Vale do Javari, no Amazonas.
Queremos saber por que um homem se sente com o poder de esfaquear 15 vezes sua ex-companheira, na frente de seus filhos. Queremos dizer basta ao feminicídio. Os dados parecem não nos chocar suficientemente, é como se fosse algo da ordem da banalidade ou de uma normalidade elaborada.
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E o Genivaldo de Jesus, jovem e negro, jogado dentro de um camburão, asfixiado até a morte por policiais que deveriam proteger a vida. E o chocante é vermos celulares filmando a cena como um espetáculo banal.
E somados aos absurdos já descritos e comuns em nossas notícias cotidianas, devemos denunciar que no país da abundância, há a abundância da fome.
De acordo com dados da Rede Penssan, divulgados no dia 8 de junho de 2022, 33 milhões de brasileiros e brasileiras estão passando fome. E como nos fala o Padre Júlio Lancelotti, o nome verdadeiro da insegurança alimentar grave é fome. O povo está passando fome. Chega de gente na fila do osso! Chega de gente revirando as lixeiras em busca de comida!
Segundo o relatório, 60% da população brasileira está sendo violada em sua dignidade humana. Precisamos repetir: 60% da população brasileira vive entre a fome e a má alimentação.
Os números apresentados pela pesquisa nos revelam por si só qual tem sido o projeto político do governo brasileiro. Está tudo aí, só não percebe quem não quer.
Dos 33 milhões que têm fome, 27 milhões estão nas cidades e parte significativa dos agricultores não consegue comercializar os seus produtos. Os piores níveis de fome foram observados em domicílios rurais, onde houve perdas na produção, decorrentes da dificuldade de comercialização. Em 25,6% desses domicílios pessoas passam fome.
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No período de 2021/2022, a fome dobrou nas famílias que têm adolescentes e crianças. Imaginem o reflexo na vida futura dessas crianças e jovens em nosso próximo centenário de “independência”?
Nas conclusões, o relatório ressalta o falso dilema da manutenção da economia ou a manutenção da saúde, em função da pandemia da covid-19. A manutenção da economia se deu para recuperação dos bancos e investimento no agronegócio, baseada em falácias argumentativas.
Não há como superar tal cenário sem mobilização social e sem políticas públicas. É preciso revogar a PEC 95, do teto dos gastos, mas se faz necessário novas abordagens, pois a situação atual é a pior desde 2004. Conforme nos alertava Bertolt Brecht, no século 20, em seu poema, é preciso agir.
“Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo”
- Bertold Brecht (1898-1956)
Se tem gente com fome no bicentenário, é porque os programas ainda existentes não estão sendo bem geridos. O dinheiro público não pode ser investido na mineração, nem ser distribuído por questões eleitoreiras. Precisamos gritar a nossa indignação. É preciso agir!
Renata Siviero Martins é presidenta do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Minas Gerais e assessora de projetos na Cáritas Regional Minas Gerais.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Larissa Costa