Minas Gerais

Coluna

“O tempo andou mexendo com a gente”

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"No início de maio, o Censo de Educação do Ensino Superior revelou que o número de matriculados nas universidades federais brasileiras caiu pela primeira vez desde 1990" - Foto: @vinimlo / Estudantes NINJA
Até onde nossas sensações de indiferença, fatalismo e apatia são meros acasos (se é que são)?

Quando eu entrei na Universidade Estadual de Santa Cruz, localizada em Ilhéus, na Bahia, no ano de 2017, trabalhava durante o dia e estudava à noite. Meu acesso ao curso de licenciatura em história se deu via Enem e, retrospectivamente, por meio de uma rede pública de ensino que, no contexto em que eu nasci (final da década de 1990), era de acesso generalizado e gratuito. Diferentemente dos meus pais, a possibilidade de cursar uma graduação estava no horizonte – efeito do tempo: oriunda de uma família pobre do sertão baiano, eu sabia bem que para os meus familiares, filhos de outras épocas, essa oportunidade era tão longínqua quanto utópica.

Hoje, próxima à conclusão do meu curso, além da ajuda de minha mãe, sobrevivo com uma bolsa de iniciação científica, obtida por meio da universidade, que resistiu aos cortes que, nos últimos anos, reduziu em até 51% as verbas destinadas à pesquisa, segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).  O Observatório do Conhecimento aponta que saímos de R$ 27,81 bilhões, em 2014, em termos reais, para um orçamento do conhecimento de apenas R$ 10,57 bilhões, em 2021, com perdas acumuladas beirando os R$ 100 bilhões.

Nas últimas duas décadas, o acesso à educação passou por mudanças significativas que, de um modo geral, tenderam a incluir setores da população que, embora contribuintes e mantenedores diretos do sistema de ensino pelo produto do seu trabalho, se mantinham alijados da perspectiva de continuar sua trajetória de formação até o nível superior (para não falar na série de problemas de permanência nos níveis mais básicos).

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Esse ritmo, porém, se desacelerou recentemente e, se antes, havia um incômodo, restrito aos discursos e práticas do cotidiano de certos setores, com a ampliação das oportunidades de formação (o que não é, a propósito, pouca coisa), nos últimos seis anos isso se tornou uma política de retrocesso encampada pelos poderes instituídos.

Desmonte da educação brasileira

No início de maio, o Censo de Educação do Ensino Superior revelou que o número de matriculados nas universidades federais brasileiras caiu pela primeira vez desde 1990 – resultado de uma drástica redução nas verbas de investimento educacional. Um levantamento da Agência Pública, no mesmo mês, demonstrou que a situação é ainda mais grave no que se refere aos discentes indígenas e quilombolas: em grande parte dependentes da bolsa permanência para se manter estudando, pelo menos seis em cada dez têm seus pedidos negados. É o menor número de bolsas concedidas a esses estudantes desde 2013. O governo Bolsonaro concretiza, em 2022, uma redução de 31,62% no número de alunos recebendo o auxílio.

Nascidos em um momento da história da educação brasileira em que os direitos de acesso e permanência se tornavam uma realidade e seguiam (apesar das diversas lacunas ainda persistentes) uma trajetória ascendente, talvez nós, estudantes dessa geração, tenhamos durante algum tempo perdido a exata percepção do caráter de disputa que o campo das políticas educacionais possui.

Quem se debruçar, ainda que apenas por alguns instantes, sobre o processo histórico do sistema público de ensino que nos forma, perceberá o quanto as lutas das mulheres, dos trabalhadores e da população negra, bem como indígena, foram fundamentais para as transformações experimentadas. Perceberá também que a educação, como direito abrangente, portanto, não está garantida por si mesma. As evidências disso estão postas à nossa frente.

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Mergulhados nesse contínuo “presentismo”, talvez atribuamos as dificuldades surgidas apenas como fruto das circunstâncias mais próximas de nós, no tempo. Talvez não tenhamos olhado com cuidado para um passado, onde discursos que associam a educação à “balbúrdia”, frequentemente desembocavam em políticas governamentais que visavam desmantelar processos de abertura do sistema de ensino para as classes populares. Mas, por outro lado, talvez tenhamos deixado de perceber, também, que cada passo dado no sentido de retomar esses processos exigiu uma postura ativa, crítica, consciente e, sobretudo, participante dos sujeitos.

Indiferença e apatia quando diante de contextos adversos, são reações esperadas. No entanto, são também os calçados de lã para os pés de quem não pretende, não gosta e nem deseja que seja possível avançar na conquista dos direitos de uma cidadania mais extensa do que a cidadania política, ou seja, uma cidadania social.

A afirmação de Belchior, que intitula este texto, pode ser transformada em uma questão: de que forma o tempo andou mexendo com a gente? Falo para todos e todas, mas especialmente para aqueles e aquelas de quem me aproximo em termos de geração. Até onde nossas sensações de indiferença, fatalismo e apatia são meros acasos (se é que são)? Quando deixamos de agir e pensar o nosso presente em profundidade, quem age e pensa por nós?

Acredito que, assim como canta o nosso poeta, é preciso não esquecer. Ainda mais do que isso, é urgente sonhar e agir. Minhas palavras são, desse modo, um convite a sonhar e escrever em letras grandes pelos muros deste país nossa indignação, nossas angústias e também nossas esperanças – aquilo que desejamos para o futuro e que, em relação a um presente sombrio, queremos que seja diferente.

 

Raquel Freire Bonfim é estudante de licenciatura em história, na Universidade Estadual de Santa Cruz, e membro do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação (GRUPPHED/UESC).

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa