Minas Gerais

MINERAÇÃO

Artigo | A Renova(ção) na cultura do Vale do Rio Doce

As críticas às políticas culturais reduzidas à oferta de editais não são novas

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
A identidade gráfica dos Editais Doces da Fundação Renova não condiz com a realidade da Bacia do Rio Doce - Foto: Divulgação/Renova

Em “Propaganda”, a banda Nação Zumbi sintetizou esta reflexão em uma frase: “como pode a propaganda ser a alma do negócio, se esse negócio que engana não tem alma?”. Vinte anos se passaram desde o lançamento do álbum homônimo, mas a canção continua atual.

Com editais classificados como “doces”, a Fundação Renova agora atua na região atingida pelo desastre da mineração na Bacia do Rio Doce financiando ações culturais em vários municípios. Em um contexto de insustentabilidade e de recuo das políticas públicas para a cultura, consolida-se uma gestão meritocrática do fazer cultural. Agentes e trabalhadores da cultura, neste contexto de escassez, aderem por necessidade, mas não é raro a Fundação ser tratada acriticamente, como se ela fosse a salvação da lavoura.

A renova(ção) na cultura do Vale do Rio Doce sucede um cenário marcado pela falta de financiamento e de recursos para o setor. A própria instituição atestou assim na maioria dos diagnósticos que fez para cada município, dando a entender que o Estado não cumpria seu papel, que aqui também pressuponho ser dele. Como se não bastasse, veio a pandemia, o que deixou as vacas ainda mais magras.

Uma tempestade perfeita, muitos diriam. Esse termo é usado para caracterizar situações nas quais um evento é fortemente afetado por uma rara combinação de fatores. E melhor expressão não há para definir o cenário sob o qual se ampliou o poder supraestatal da Fundação Renova. Sutilmente, se estabelece a narrativa de protagonista no processo de recuperação da região. Eventualmente, escuta-se algo nos termos de: “antes com os Editais Doces do que sem eles”. Mas qual o outro lado dessa moeda que vem sendo ofertada?

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As críticas às políticas culturais reduzidas à oferta de editais não são novas. O caráter temporário, a concentração das expressões culturais de uma localidade nas mãos de quem sabe operar com editais, a concorrência – que pode até adentrar no terreno dos afetos – pelas fatias do bolo distribuídas na forma de “prêmio” para os mais “competentes”; nada disso passou ileso diante do crivo de artistas e agentes culturais mais engajados.

Seus formuladores pressupõem que todos estão em pé de igualdade, mas a verdade é que muitos ficam pelo caminho, pois as condições para aprovar um projeto são absurdamente desiguais. Eis a ambiguidade desse modelo. Enquanto é celebrado como democrático, por vezes, também exclui as manifestações culturais mais representativas das identidades historicamente invisibilizadas no processo de modernização dos lugares.

O rompimento da barragem de rejeitos de minério, por exemplo, retirou de muitos povos tradicionais, principalmente os ribeirinhos, mais do que bens materiais. Despojou-os de parte de sua cultura: o próprio Rio Doce. Uma riqueza que não pode ser magicamente restituída.

Imaginem uma comunidade cuja manifestação cultural era uma forma de contar a história do seu povo, agora tendo que lidar com uma extenuante exigência protocolar que não lhes permite reproduzir suas tradições soberanamente. O que seria das expressões culturais do semiárido, por exemplo, com forte protagonismo de idosos, se elas fossem totalmente dependentes dessa filosofia gerencial?

Os editais nem sempre são acessíveis a essas pessoas. Essas que não fazem da virtualização do cotidiano uma prática diária, ou àqueles que não dispõem de meios para participarem de uma oficina. Por mais que vivemos em uma época de idealização estética do chamado “Brasil profundo”, via novelas, filmes e clipes musicais, na realidade, ainda existe muita gente que não possui sequer uma conta em banco.

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Mesmo assim, esse modelo vem se consolidando. A pandemia parece ter dado início a uma nova era no financiamento à cultura. Relevantes iniciativas temporárias para socorrer esse importante setor, que ficaram amplamente conhecidas por homenagearem Aldir Blanc e Paulo Gustavo, foram elaboradas para funcionar por meio de editais.

“Na Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet) por não haver concorrência para a aprovação, é possível ser mais abrangente, não precisando escolher todos os detalhes de antemão. Já no edital, é exatamente o contrário. É preciso entregar tudo de primeira, com nomes, orçamento e qualquer outra etapa do projeto de forma completa, detalhada, a fim de vencer a concorrência”, disse Flávio Nardelli, da Cia. Arte em Curso.

O problema ganha outra dimensão quando uma compensação, que deveria ser humanizada por se tratar de danos causados pelo rompimento da barragem que afetou uma bacia hidrográfica inteira, adota esse modelo de “Enem do fazer cultural”. Por serem distintos dos editais de recursos emergenciais que o Estado – pressionado pela sociedade civil –, vem destinando ao setor cultural nesta pandemia, os editais “doces” deveriam ter, de fato, caráter de uma ação compensatória, mas reproduzem uma lógica excludente.

Assemelham-se a concursos meritocráticos para os trabalhos criativos dos próprios atingidos, esforços viabilizados financeiramente pela Renova nesta escassez de recursos para a cultura. A contrapartida exigida é a propaganda: a vinculação dos resultados dos projetos “vencedores” aos resultados de uma função maior, uma suposta compensação dos danos causados pelas atividades econômicas das empresas que compõem a Fundação.

Nessa perspectiva, como sugere um estudo publicado na Revista Brasileira de Estudos Organizacionais sobre o protagonismo narrativo da referida instituição, não há como desconsiderar a hipótese de que esses certames também são meios publicitários para exacerbar sua reputação como organização vinculada aos responsáveis pelo maior desastre socioambiental da história deste país.

Principalmente quando a realidade nos impede de enxergar a bacia do Rio Doce de modo colorido e animado, como emula a identidade gráfica desses editais. Basta uma simples busca na internet para encontrarmos relatos de que a Fundação faz o que a Vale determina e não aquilo que os atingidos precisam.

Como bem disse o roteirista, escritor e jornalista Ricardo Soares, em “Crônicas do Rio Doce 3: a Renova nada renova”, “por mais que a gente queira dar o tal benefício da dúvida a essa Fundação, fica difícil quando, em centenas de quilômetros percorridos no entorno do desastre e dezenas de personagens ouvidos, não apareça um único para dizer que a Renova é bacana”. “Não encontrar um único que defenda a Renova nos faz, no mínimo, ficar com a pulga atrás da orelha”.

 

Welder Nunes de Souza é mestrando em Sociedade, Ambiente e Território na UFMG/Unimontes.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa