Deus solidário e libertador desce para aliar-se às lutas libertárias
Expropriados e forçados a se tornarem migrantes errantes por várias regiões, os povos da Bíblia tiveram que lutar muito pela terra, porque ela estava sequestrada nas mãos dos faraós, no Egito; dos reis das cidades-estados e de pretensos senhores da terra, que delas se apropriavam, expropriando os camponeses, em Canaã. Assim, desrespeitavam o preceito bíblico de “Terra de Deus, terra de irmãos/ãs”.
Se lermos de forma literal e fundamentalista o livro de Josué, podemos tirar conclusões que justifiquem “guerra santa” e violência em nome de Deus. O livro de Josué, porém, pode ser comparado a uma corda composta de vários fios diferentes, de épocas diferentes, ou a uma casa construída com tijolos de vários formatos, de épocas diferentes.
Dezenas profetas e lideranças na história da luta pela terra
À primeira vista, há uma exaltação de Josué como o grande líder e sucessor de Moisés. Isso provavelmente foi escrito para cacifar e legitimar as reformas que o rei Josias - outra versão do nome Josué - estava tentando implementar de 640 a 609 a.E.C. Essa época foi de um vazio político dos impérios: o Império Assírio destroçado e o Babilônico ainda não erguido a ponto de poder controlar Canaã/Palestina.
Moisés não foi o único líder libertador dos povos escravizados sob as garras do imperialismo dos Faraós. O movimento de libertação iniciara-se com as mulheres parteiras, que se haviam rebelado fazendo greve geral e desobediência civil e religiosa diante de um decreto-lei do faraó que mandava matar os meninos no momento do parto, visando o controle de natalidade.
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Miriam foi outra grande libertadora dos povos escravizados no Egito. Assim também, na história real, a luta pela terra não teve uma liderança monopolizada por Josué. Inúmeros grupos escravizados e considerados subalternos pelo poderio das cidades-estados foram protagonistas nas lutas empreendidas. Precisamos ler não apenas nas linhas, mas nas entrelinhas e por trás das palavras do livro de Josué, para compreendermos as lutas de fato ocorridas, como diversas e processuais.
Conquista da terra se deu de forma parcial, em longo processo, com vitórias e derrotas, de forma descentralizada
O livro de Josué abre a segunda parte da Bíblia Hebraica, os Profetas (Nebiim, em hebraico) chamados “anteriores”: Josué, Juízes, 1Samuel, 2Samuel, 1Reis e 2Reis. O livro de Josué não é história e nem crônica jornalística, mas teologia narrativa da conquista e da partilha da terra pelos povos escravizados que se uniram e se organizaram na luta pela terra.
Em uma aliança com Javé, o Deus solidário e libertador que ouve o clamor dos escravizados e desce para aliar-se às lutas libertárias, o povo caminha e luta pela terra prometida (Ex 3,7-9). O nome Josué (Yehoshu‘a, em hebraico) significa “Javé salva, liberta, socorre”. Mais que ser uma pessoa, Josué representa um projeto: Javé liberta, tomando a terra dos opressores e dando-a aos sem-terra que se unem, se organizam e lutam, com fé, coragem e sem desanimar. Assim, a terra é dom e conquista.
Conquista da terra: longo processo de luta e libertação
Nos primeiros 12 capítulos do livro de Josué temos, em narrativa teológica, a luta pela conquista da terra prometida por Javé, o Deus do Êxodo. Js 1-12 busca mostrar que o Deus Javé é mais poderoso que todas as divindades do império Assírio. Na segunda parte de Josué, nos capítulos 13 a 24, temos a partilha e distribuição da terra conquistada.
À primeira vista, a conquista da terra se deu de forma rápida, ininterrupta, global, total, como se tivesse acontecido em uma guerra relâmpago, e a sua partilha também. Essa ideia de conquista rápida e global reforçava as intenções expansionistas do rei Josias (640 a 609 a.E.C), época da primeira versão do livro de Josué.
Movimento de libertação iniciara-se com as mulheres parteiras
Observando as entrelinhas do texto do livro de Josué e também do livro de Juízes percebemos que certamente a conquista da terra de Canaã/Palestina se deu de forma parcial, em um processo complexo, longo, com vitórias e derrotas. A partilha também.
No livro de Juízes, líderes do povo, tidos como heróis, são convocados por Javé para libertar territórios das garras de povos idólatras e opressores. Sansão, o último líder deles, foi convocado para libertar o território do domínio dos filisteus e isso durou muito tempo, até o reinado de Davi (2Sm 8,1).
Segundo o livro de Juízes, diferentemente do livro de Josué, a conquista da terra se deu de forma descentralizada, por meio da luta empreendida pelas tribos de forma autônoma, sem coordenação de Josué. Em Jz 1,21.27-36, temos uma lista de cidades e de territórios ainda não conquistados, todos da planície, exceto Jerusalém, que será conquistada apenas no início da monarquia (2Sm 5,6-12). As cidades da planície de Jezrael só foram conquistadas na época do reinado do rei Salomão, de 970 a 930 a.E.C., (1Rs 4,12; 9,15).
Mais território, mais tributos, soldados e corveia
No livro de Josué há também contradições internas. Por exemplo, Js 13,1b lamenta: “Ainda ficou muitíssima terra por conquistar”. Em Js 13,1-13 encontra-se a lista dos territórios não conquistados: “territórios dos filisteus, território de Acaron, grilado pelos cananeus ...” É bom lembrar que a fixação de limites territoriais interessava principalmente ao Estado, para implementar cobrança de tributos (1Rs 4), para arregimentação de soldados para as guerras (Cf. 2Sm 24) e para convocar trabalhadores para a corveia (Cf. 1Rs 5,13ss). Para as comunidades tribais, limites de territórios pouco importavam, pois predominava a noção comunal da terra.
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Há outras contradições internas no livro de Josué. Em Js 18,10, quem reparte a terra em Silo é Josué sozinho para sete tribos. Contraditoriamente, em Js 14,5 e 19,49, o povo todo participa na partilha da terra. Isto indica formas diferentes de reler a história, com intenções diferentes. A assembleia de Js 8,32-35, além dos homens, inclui mulheres, crianças e estrangeiros. No entanto, na “assembleia” de Js 23, estrangeiros são excluídos (Cf. Js 23,7-13; Esd 10; Ne 12-13).
O livro de Josué reafirma o que está em Êxodo, Números e Deuteronômio: “a terra deve ser repartida como herança” (Js 13,6). E enfatiza: “Reparta a terra para ser herança ...” (Js 13,7). Exclui-se terminantemente a ideia da terra como mercadoria, passível de venda e compra. A luta pela terra é legítima apenas para usufruto, para passar de pai e mãe para filhos/as, netos/as ..., jamais por interesse de mercado.
Mês da Bíblia: seja firme e corajoso
Em setembro de 2022, o mês da Bíblia terá como tema o livro de Josué com o lema: “Seja firme e corajoso porque Javé teu Deus estará contigo, onde quer que vás” (Js 1,9), na luta pela terra e pelos territórios.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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Edição: Elis Almeida