Quem se engaja nos discursos pró e anti-armas?
Raymond Willians (1921-1988) é uma inspiração para os estudiosos de mídia. Me lembrei dele ao ver um anúncio de clube de tiro com o slogan: “casal que atira unido, permanece unido”. Usar armas de fogo virou coisa de família e programa de casalzinho. Eu estranhei.
Willians tinha pai ferroviário, formou-se no movimento operário e estudou Sociologia e Literatura em Cambridge, com bolsa de estudos. Um dos seus livros mais conhecidos se chama “Palavras-chave”, no qual ele investigou a história íntima de diversas palavras relacionadas à luta de classes e outras tensões da sociedade moderna.
A publicidade do clube de tiro remeteu minha memória ao verbete “instituição”. Raymond explicou que essa palavra designa uma ação ou processo que se repetiu tanto até se tornar algo aparentemente objetivo e sistemático, a ponto de ser naturalizado. É como se o jeito normal de ser daquele processo sempre tivesse sido aquele. Cabe ao pensamento crítico recuperar a história e desfazer a naturalização, problematizando-a e, consequentemente, revelando as relações de poder ocultadas.
O anúncio em questão foi muito eficiente em naturalizar a prática do tiroteio. Temos ali um casal de meia idade, ela vestida e maquiada “para matar” (desculpe, leitor, não resisti ao chiste), com os cabelos longos ondulados de chapinha. Ele barbeado e com cara de bom moço. Os braços do homem estão cruzados sobre o baixo ventre, dá para ver a aliança e um relógio espalhafatoso. Quem segura a arma, empoderada, é ela. A tonalidade predominante é escura, com tons de preto, marrom e vermelho escuro.
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Há uma atmosfera romântica gótica e atraente, devo confessar. E há um enigma no cenário: o pano de fundo é formado por uma textura de troncos de árvores empilhados, como aqueles que emolduraram as conhecidas poses do ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Sales, na Amazônia abatida. Seria uma mensagem subliminar aos desavisados combatentes do desmatamento?
A naturalização do armamento
Eu ainda tenho na memória as discussões públicas sobre o estatuto do desarmamento e aquelas fotos que estampavam as primeiras páginas dos jornais, mostrando rolos compressores esmigalhando passarelas de armas recolhidas nos idos de 2004. Quem, àquela altura, imaginaria a circulação do anúncio do casalzinho atirador? Em menos de dez anos, vimos as representações publicitárias incluírem o estímulo à posse de armas como se fosse um anúncio d’O Boticário. Como isso foi possível?
Se praticarmos a desnaturalização do processo, saberemos que um marco importante está na campanha do presidente Jair Bolsonaro, que incluiu o tema no seu “plano de governo”, chamando armas de objetos inertes, como faca ou martelo. E teve também aquela pérola do ex-ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni, que comparou o risco de um revólver em casa ao de ter um liquidificador na cozinha.
Rolos compressores esmigalhavam passarelas de armas recolhidas em 2004
Junte-se a abundância de imagens do 03, todo classudo com um revólver, a profusão de fotos em redes sociais com gente comum fazendo a pose da arminha e pronto: a intimidade romântica se faz com uma massagem sexy ou com uma boa ida ao clube de tiro. A vida em família acolhe a arma de fogo. E a publicidade cuida de eliminar todos os vestígios históricos e problemáticos dessa institucionalização.
Quem ainda bota fé na regulação da mídia, verá que até o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, o Conar, em abril deste ano, decidiu por advertir e sustar um anúncio do Clube de Tiro e Caça Keller CTK (aliás, o mesmo do casalzinho que me escandalizou), que incentivava mulheres a portarem armas, com um evidente apelo emocional: “uma mulher armada é uma mulher segura”.
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Invocação tão banal quanto aquela do absorvente que promete segurança por não sair do lugar. Mas o Conar virou voz dissidente nesses tempos de institucionalização da violência família, e parece que se juntou às fotos de armas esmigalhadas por rolos compressores de 2004.
Tudo o que se naturaliza pode ser desnaturalizado
Felizmente, tudo o que se naturaliza ideologicamente pode ser desnaturalizado. É assim que criamos novos consensos, palavra que Raymond também investigou. No livro, ele atenta para o fato de que “consenso” se tornou um importante termo político no século XX para designar ações empreendidas com base em um corpo existente de opiniões acordadas.
Mas não sem problemas, porque a política do consenso também pode ser usada para evitar as divisões de opinião, numa pragmática tentativa de ocupar o meio termo e desmerecer questões secundárias subjacentes. O efeito colateral mais conhecido é que as partes em competição vão fazer de tudo para recuperar o status das questões preteridas.
No palco de disputas simbólicas que é a mídia, talvez o consenso narrativo construído em torno do estatuto do desarmamento deixou passar batido questões secundárias como os interesses de comerciantes de armas, dos praticantes de tiro esportivo e daquelas pessoas que simplesmente são imbuídas de ódio direcionado a um ator social específico, fruto do mais puro preconceito. Essa parte do público se vê contemplada agora, no anúncio romântico de tiroteio.
Mas esse é um processo histórico, lembra? Foi construído e pode ser desconstruído, ainda bem. O que podemos fazer é recolher todo esse material e tratá-lo pedagogicamente. Investigar as representações em disputa, o modo como as narrativas são construídas, quais são as identidades de quem se engaja nos discursos pró e anti-armas e, criticamente, nos localizarmos nesse espectro, ao invés de cedermos ao apelo emocional da publicidade.
É um exercício relativamente simples, mas que também vem sendo preterido nas nossas escolas e outros espaços de educação não formal.
Enquanto a mídia-educação não se institucionaliza, eu aproveito este espaço para pautar um ponto de vista alternativo ao anúncio do clube de tiro, lembrando de um verso do Erasmo Carlos: “o beijo é o tiro que eu sei”.
Alexandra Bujokas de Siqueira é professora de Mídia-educação na Universidade Federal do Triângulo Mineiro em Uberaba, MG
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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Edição: Elis Almeida