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Por que as democracias estão morrendo?

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Reprodução - AFP
O Estado democrático de direito é o mínimo que aceitamos

Nos últimos dias, assistimos a diversas mobilizações em defesa das instituições democráticas brasileiras e do Estado democrático de direito em resposta às ameaças do atual presidente da República. Cartas foram escritas, assinaturas recolhidas, discursos televisionados.

Diversas entidades da “sociedade civil organizada” se encontraram representadas sob uma das palavras de ordem mais declamadas no Brasil contemporâneo: a defesa da democracia.

Ah! A democracia! Aquele vento de liberdade e autodeterminação, aquela sociedade na qual a racionalidade política comum opera, o poder que emana do povo. Quem seria contra a democracia?

Não nos enganemos. Há quem seja contra, ainda que hoje não seja de bom tom dizê-lo em voz alta. Existem aqueles que acreditam somente na própria força e na própria vontade como supremas, aqueles que querem fazer do mundo a sua imagem e semelhança, aqueles que se vêem como enviados para guiar e comandar, aqueles que gostam do poder para si e para os seus.

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Nós gostaríamos de acreditar que os últimos desses homens ficaram para trás no século XX, mas o mundo contemporâneo nos trouxe de volta à realidade: os candidatos a ditadores e os sórdidos fascistas continuam entre nós.

Por isso, desde já, para que não sobre nenhum espaço para devaneios interpretativos, é necessário dizer: sim, a democracia, mesmo em sua forma atual, precisa ser defendida dos arroubos autoritários e da irracionalidade grotesca dos minúsculos napoleões tropicais. As mobilizações em prol da defesa da democracia são legítimas e necessárias. Mas serão elas suficientes?

Limites das democracias modernas

Para tentar responder a esta questão, voltemos à democracia. Não é nenhuma novidade que as democracias modernas estão passando por um período difícil. A desconfiança na eficiência do processo político democrático tampouco é inédita na cultural ocidental - com resultados nefastos, sempre bom lembrar. As democracias estão morrendo, como se diz.

Mas, por que morrem? Morrem porque estão sob ataque? Ou porque esbarram em limites próprios? Ou talvez estejam sob ataque justamente pelos limites que lhes são próprios? Para nos orientar nesse novo rol de questionamentos, precisamos de uma crítica da democracia moderna. O que implica em uma crítica da sua forma mais difundida, o Estado democrático de direito.

Nos tempos obscuros que vivemos, nunca é demais repetir: criticar não é negar. Não queremos menos democracia, queremos mais e melhor. Mas, para isso, a crítica se faz necessária; a construção da crítica que nada mais é do que a compreensão das possibilidades e dos limites de nosso sistema democrático.

Diante da tragédia social que vivemos, e sob o risco de mais retrocessos, voltamos a ter o ontem como horizonte da nossa luta de hoje; voltamos a ter de lutar pelo que já nos era garantido; também nós parecemos ter voltado mais de 30 anos na história política do país. Por mais dramática e necessária que seja essa mobilização, temos que enfrentar o fato de que estamos rebaixando nossas expectativas, estamos cedendo no nosso horizonte de pautas. O slogan “Democracia sempre” não nos serve, porque quando nossa democracia nos parecia garantida ela também já nos parecia insuficiente. 

O que é a democracia na prática cotidiana do povo brasileiro?

Sejamos sinceros com a realidade histórica do nosso país e do nosso povo. No Estado democrático de direito, as forças de segurança matam a juventude negra e pobre; no Estado democrático de direito, a periferia não possui condições dignas de vida; no Estado democrático de direito, os conglomerados financeiros continuam a dar as cartas da política e da economia nacional; no Estado democrático de direito, as minorias sociais temem pela suas vidas apenas por serem o que são; no Estado democrático de direito, a riqueza é produzida para ser logo concentrada; no Estado democrático de direito, uma presidenta legítima sofreu um golpe sancionado por todas as instituições do Estado democrático de direito.

Ou seja, o que efetivamente o Estado democrático de direito significa na prática cotidiana do povo brasileiro? Para as pessoas que morreram na pandemia por pura falta de vontade do governo federal em fazer o óbvio? Para os milhões de brasileiros e brasileiras que hoje passam fome? Para as famílias que se encontram no drama de não ter emprego e renda? Para aqueles que não possuem a segurança de ter um teto sob suas cabeças? O que essa forma do Estado democrático de direito garante? Talvez um mínimo, dirão alguns, mas esse mínimo ainda é muito pouco, precisamos responder. 

Esse mínimo está ameaçado e é importante defendê-lo, especialmente contra a boçalidade que resolveu se levantar dos lixões da história. Entretanto, sejamos ousados: o Estado democrático de direito não é um valor universal, um eterno, uma obra celestial acabada. Ele é o mínimo que aceitaremos.

Não defendemos o Estado democrático de direito porque acreditamos que ele é a grande solução para nossos conflitos e contradições. Pelo contrário, sabemos que o Estado democrático de direito foi completamente incapaz, por exemplo, de oferecer resistência efetiva contra a ascensão dos fascismos - tanto os da década de 1920 e 1930 quanto os de agora.

O jogo democrático permitiu e continua a permitir a tragédia que vivemos, e nem ao menos tem a perspectiva de garantir que isso não se repetirá jamais. Quantas vidas estamos dispostos a sacrificar pela manutenção do sagrado Estado democrático de direito? 

Democracia é o movimento de lutas históricas

Que o leitor não entenda mal. Não se trata de nenhuma apologia a formas de autoritarismos. Apenas da afirmação muito clara de que restringir tudo o que a democracia pode ser e significar à sua forma moderna do Estado democrático de direito é reduzí-la enquanto potência.

É tomar forma por substância. A essência da democracia não é uma série de regras, de estamentos, de leis, de discursos. A essência da democracia sempre foi o demos, o povo. Na Grécia antiga a democracia (mesmo na sua completa insuficiência na exclusão sistemática de escravos e mulheres) foi um escândalo porque passou a participar da política quem não tinha direito ou poder para fazê-lo; não era porque se votava ou porque tinha-se um governante diferente, mas porque aqueles que não eram vistos como dignos de serem cidadãos efetivos, passaram a ser.

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Ou seja, a democracia não é uma coisa, uma forma pronta e acabada, uma cartilha; a democracia é o movimento de lutas históricas pelo reconhecimento e pela integração real, prática e cotidiana (e não apenas formal, não apenas na bravata) de contingentes inteiros de explorados e oprimidos pelo sistema vigente, mesmo que isso exija uma transformação completa de tal sociedade.

A democracia sempre foi, antes de tudo, um escândalo e, por isso, revolucionária e emancipadora. O que a democracia faz é lutar para garantir que os explorados e oprimidos do mundo tenham a superação da sua condição efetivamente garantida, para que sejam membros respeitados e ativos da sociedade.

A Democracia (substantivo feminino e não apenas adjetivo acessório, porque é potência transformadora e emancipadora) só pode se realizar enquanto crítica de um Estado democrático de direito que, por sua vez, já vem demonstrando a sua incapacidade de garantir as condições necessárias para que a emancipação humana se amplie e se aprofunde; para que as pessoas tenham cada vez mais vida, e vida em abundância.

Povo brasileiro merece mais que só o atual Estado democrático de direito

O Estado democrático de direito ainda é a concessão que aceitamos fazer. Ele é muito pouco diante do que o povo brasileiro merece e precisa. O Estado democrático de direito é o mínimo que aceitamos. Queremos e podemos muito mais. Ele será nosso ponto de partida inegociável, nossa pedra de apoio para uma transformação justa e necessária da sociedade brasileira.

Que os fascistas fiquem avisados de que não nos amedrontarão nem castrarão nossos sonhos e nossas potências. Suas pretensas demonstrações de firmeza e autoridade mal conseguem esconder a sua carcaça podre, sua forma de verme, seu pensamento vazio e sua falta de fibra moral. Nós sabemos quem vocês são e sabemos dos seus interesses mesquinhos e sórdidos escondidos por detrás da aparência lustrosa e heroica. Nós sabemos da covardia e da baixeza de espírito que animam seus ideais decrépitos. Estejam avisados: não cederemos terreno nem daremos um passo para trás, daqui é somente para frente. E, se preciso for, verás que um filho teu não foge à luta.

Marcos Gustavo Melo é graduado em Economia, Mestre em Geografia e Doutorando em Economia. Pesquisador de Economia Política e História do Pensamento Econômico e membro do Instituto Economias e Planejamento

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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Edição: Elis Almeida