Aos poucos, a paisagem dos dois lados da estrada vai tomando outras formas. A vegetação do cerrado, em suas diversas formas e cores, vai sendo substituída pelas fileiras homogêneas de eucalipto, de igual altura, cor e espaçamento entre as árvores. Pela pista da esquerda, no caminho contrário, um movimento intenso de caminhões carrega pedaços da terra para onde nos dirigimos: levam consigo grandes toras de pinus e eucalipto, e é possível que no futuro também carreguem minério de ferro.
Atravessando essas paisagens, pesquisadoras e pesquisadores de diversas cidades tomaram o rumo para Grão Mogol, município mineiro que sediou o Seminário Revelações da Pesquisa Social do Projeto Veredas Sol e Lares. Além do seminário, por lá também aconteceu a Formação da Equipe de Pesquisadores Populares e visitas a 12 comunidades da microrregião.
As atividades, realizadas nesse mês de agosto, foram mais um passo marcante da jornada iniciada em 2018, quando o Programa de Pesquisa e Desenvolvimento da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) acolheu a proposta de construção de uma usina solar fotovoltaica flutuante (UFVF) sobre o reservatório da pequena central hidrelétrica (PCH) Santa Marta, também na cidade de Grão Mogol. A instalação dos módulos fotovoltaicos no lago da PCH despontava como o primeiro projeto de usina híbrida do país, inovando em tecnologias de captação e conversão da energia obtida da luz do sol.
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Com financiamento da Cemig e execução da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS), da Axxiom, da Cemig Sim e da PUC Minas, o projeto Veredas iniciou uma travessia de grandes desafios, incluindo sua suspensão, em 2020, em meio à pandemia de covid-19. A retomada do projeto foi conquistada em março de 2022, após mobilizações das comunidades organizadas e do apoio de diversos parceiros e parceiras, dentre eles o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
O seminário realizado em Grão Mogol foi o reencontro presencial de toda a equipe de pesquisadoras e pesquisadores populares, no intuito de planejar e dialogar com as comunidades sobre o cronograma de atividades até fevereiro de 2023, quando é previsto o início da operação da usina. Dali em diante, as equipes do projeto e as comunidades vão criar a maior associação de produtores e consumidores do Brasil, que irá envolver, na gestão popular da UFVF, representantes das 1250 unidades consumidoras que serão beneficiadas em 21 municípios do Vale do Jequitinhonha e da região do Rio Pardo. Esta é outra inovação do projeto: construir uma gestão popular para a maior experiência de geração compartilhada de energia do Brasil.
Entenda a pesquisa social e suas metodologias
As extensas plantações de eucalipto de pinus que dominam a paisagem do cerrado são resultado da forma como historicamente foi pensado o desenvolvimento na região mineira: investimentos vindos do capital externo, cujo planejamento se deu sem participação popular e que induziram a concentração de terras e de renda.
Usina de energia solar fotovoltaica leva esperança para comunidades do semiárido de Minas Gerais
É isso que aponta o Diagnóstico Socioeconômico da Microrregião de Grão Mogol, produto do processo de pesquisa realizado no projeto Veredas em parceria com o Movimento dos Atingidos por Barragens e com o Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Atrelado a esses projetos, implementados desde a década de 1970, veio também o modelo energético baseado na construção de centrais hidrelétricas, que atendem os grandes empreendimentos e causam forte impacto socioambiental na região.
Todos esses resultados da pesquisa foram debatidos pelas comunidades reunidas no seminário, que foi um ponto culminante nos estudos realizados com metodologias participativas desde 2018 com o objetivo de construir uma série de princípios, diretrizes e propostas para o desenvolvimento local e regional. As metodologias utilizadas levam em consideração a realidade vivida e percebida pela população local, através de dinâmicas de construção de mapas e diagramas que refletem os problemas cotidianos e os potenciais de cada território.
Além disso, o estudo serve para instruir a construção dos critérios de seleção das unidades consumidoras beneficiadas com o desconto na conta de energia elétrica, que será proporcionado pelo funcionamento da UFVF a partir de fevereiro de 2023.
Durante o seminário, que no dia 6 de agosto reuniu cerca de 100 pessoas em Grão Mogol, moradoras e moradores de Cristália, Grão Mogol, Josenópolis e Padre Carvalho receberam devolutivas dos resultados parciais da pesquisa social e debateram os rumos do Veredas Sol e Lares em suas comunidades.
Para Nenzão, geraizeiro do distrito de Vale das Cancelas (Grão Mogol/MG), não se pode subestimar o diferencial produzido por esse método de construção sobre os resultados do processo.
“Esse projeto é uma ponta de esperança pra gente que vive no meio desses outros projetos que vieram de fora, essas firmas de eucalipto e minério. Chamaram a gente de atrasado, de miserável, e trouxeram essas empresas pra cá. Mas elas não trouxeram o tal do desenvolvimento, vieram tomando as terras, acabando com a água, desmontando a cultura dos geraizeiros. Então eu acho que o jeito de solucionar isso é trazendo a participação do povo”.
A luta das comunidades geraizeiras e o projeto Veredas
“Logo o primeiro casal que eu credenciei relatou não ter acesso a Energia Elétrica. Isso já me causou um impacto, porque pra gente energia é uma coisa muito básica”. O relato é de Joana D’arc Cunha, graduanda em história pela UFVJM e pesquisadora do Observatório dos Vales e do Semiárido Mineiro, ao falar sobre o momento de credenciamento de moradores e moradoras das comunidades, na chegada ao seminário. O formulário preenchido no acolhimento também servia para levantamento de dados sobre as famílias que estavam participando do processo de pesquisa.
No caso de Leonino Nogueira e Marcelina Suares, aos quais se refere Joana, a falta de acesso à energia está associada à implementação da usina de Irapé no ano de 2006, por mais paradoxal que isso possa parecer.
Comunidades apontam a inconsistência do poder público leniente com as monoculturas e com a mineração
Como contrapartida ambiental ao empreendimento, que resultou na construção da maior barragem de água no Brasil, em pleno semiárido mineiro, em 1998 foi estabelecido o Parque Estadual de Grão Mogol. O parque incluiu em seu perímetro terrenos de geraizeiras e geraizeiros fixados há gerações na região, em muitos casos sem que houvesse acordos para indenização e reassentamento das famílias. Incluídas no perímetro do parque, essas pessoas se viram subitamente impedidas de realizar suas atividades produtivas ligadas à tradição de manejo sustentável da terra, além de não terem acesso a energia elétrica e outros serviços públicos básicos.
As comunidades defendem que sua forma de ocupação da terra, diferentemente dos grandes empreendimentos implantados na região, não causam a degradação ambiental que o parque buscaria evitar. Pelo contrário, as atividades de agricultura o extrativismo das flores e frutos do cerrado seriam responsáveis por recuperar nascentes e os córregos que abastecem a própria Usina Hidrelétrica de Irapé.
Essas comunidades geraizeiras também apontam a inconsistência de como o poder público mobiliza o argumento da proteção ambiental para cercear ostensivamente as condições de vida das comunidades tradicionais, ao mesmo tempo em que é leniente com as monoculturas e com a mineração.
Maior barragem de rejeitos e segundo maior mineroduto
A região é palco das tensões em torno do projeto minerário da Sul Americana de Metais (SAM), que prevê a construção da maior barragem de rejeitos do país e o segundo maior mineroduto do mundo, percorrendo 500 km entre Grão Mogol em Minas e Ilhéus na Bahia. O projeto ameaça os recursos hídricos da região que já sofre com as secas, sendo um risco para a existência de dezenas de comunidades, entre elas, muitas comunidades tradicionais.
Segundo o relatório de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC Dom Tomás Balduino – CPT) divulgado em 2022, o estado de Minas Gerais é o segundo do país em número de conflitos no campo envolvendo terra e água na mineração, contabilizando 54 focos de conflito no ano de 2021. Os Vales do Jequitinhonha e Rio Pardo têm sido campos de expansão desses conflitos ligados à implementação do Bloco 8 da SAM que, mesmo após diversos pareceres desfavoráveis do IBAMA, tem realizado manobras para avançar seu licenciamento e enfrenta a resistência das comunidades da região.
Acesso a água, grilagem e ausência de serviços públicos
Os resultados da pesquisa participativa foram sistematizados na forma de cartilhas que reúnem as causas, efeitos e alternativas aos principais problemas enfrentados cotidianamente por cada comunidade. A maioria dos territórios aponta como principais problemas o acesso à água, grilagem de terras e carência de acesso a serviços públicos.
Um exemplo é o acampamento São Francisco (Grão Mogol/MG), cujos moradores relataram o avanço da grilagem dos campos de uso comum pela monocultura de eucalipto. Desde as últimas visitas das pesquisadoras e pesquisadores populares em 2020, o conflito escalou até a ocorrência de um incêndio, que segundo a comunidade teria sido obra de fazendeiros de eucalipto, no centro comunitário do acampamento.
O avanço dessas violências tem cercado os recursos dos terrenos comuns, ocasionando, por exemplo, a escassez do pequi, alimento típico que garantia alguma segurança alimentar para a região:
“Não tem mais pequi, que era um alimento pra muita família aqui. Agora se você quer um pequi tem que pagar R$ 20 lá em Montes Claros. Sendo que dá pra entrar no mato aí e pegar de graça. E a gente não deixa destruir não. Eu mesmo plantei cinquenta pés lá em cima", afirma Nelson Pereira, morador da comunidade.
Dinamizando a economia local
Embora muitos dos problemas levantados não sejam diretamente solucionados pela construção da usina solar fotovoltaica do projeto Veredas - por exemplo, a energia da usina não poderá atender casas que não tenham instalações para distribuição -, os abatimentos na conta de luz, que atenderão as 1250 unidades consumidoras do Vale do Jequitinhonha e região do Rio Pardo, podem dinamizar a economia local como um todo.
“No Vale do Jequitinhonha existem todas essas diferentes formas de economia, como sistemas de uso comum da água e da terra, laços de reciprocidade, as próprias feiras livres, que as economias de mercado colocam no bojo da categoria informal, mas que na verdade são economias altamente diversificadas e que podem ter uma dinâmica própria de desenvolvimento. É possível pensar em como a usina pode beneficiar esses circuitos”, afirma Tomás Balduíno, pesquisador do Instituto Economias e Planejamento, responsável pelo estudo de viabilidade econômica da Usina.
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Além do efeito multiplicador na dinamização das economias locais, o processo de participação popular em torno do projeto fortalece a ação coletiva em defesa dos territórios, além de visibilizar as lutas e potencialidades alternativas da região por meio da pesquisa social.
Segundo Marlene, moradora de Vale das Cancelas, os geraizeiros “foram sempre barrados, nunca deixaram a gente entrar pra falar com as pessoas sobre o que é nosso movimento, sobre o que são os direitos e os deveres das comunidades. Já pras firmas eles dão essa abertura, elas falam o tempo todo pra defender o eucalipto e a mineração. A gente precisa passar a se sentir gente, precisamos ficar empoderadas pra falar da nossa luta e nosso direito”.
Aline, estudante e moradora da mesma comunidade, acrescenta: “na escola nós temos palestras da SAM, os alunos eram obrigados a participar, contava ponto na matéria. Já o movimento geraizeiro nunca teve esse espaço. Com a pesquisa social nós estamos podendo falar e ver que outras propostas são possíveis".
Sonho
As diversas prosas sob o sol do sertão, que num futuro breve será energia elétrica nas casas de milhares de famílias, iam mostrando aqui e ali a dimensão do sonho de uma usina para o povo do semiárido mineiro.
Sonho que aparece no relato de Carmem Gouveia, moradora de Vale das Cancelas e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens. "É mais que dar um desconto na conta de luz. Com essa pesquisa do Veredas foi produzido um diagnóstico que pode ajudar na construção de um plano de desenvolvimento regional. E o objetivo, no final, é transformar luz em água". E também nas vozes das várias mães que lamentavam o fato dos filhos terem de viajar por meses para a colheita de café no sul de Minas, já que não encontram oportunidade de emprego e renda em suas comunidades.
As monoculturas, o garimpo ilegal e a mineração atravessam os Vales do Jequitinhonha e Rio Pardo. Essa conjuntura em muito lembra as inquietudes sobre as quais diz Guimarães Rosa na passagem famosa de Grande Sertão: Veredas, “o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
É o que fica nítido na fala de Nelson Pereira, ao abrigo da cabana de palha onde ocorreu a reunião com a comunidade. "A única coisa que eu tenho medo é de briga de homem, de quando o povo briga, tira faca e vira violência. Isso não é comigo não. Mas quando a briga é pra brigar pelos direitos da gente eu não tenho medo não. Tem que ter coragem".
Edição: Elis Almeida