Minas Gerais

Coluna

Minha cidade não está na Ucrânia, mas também estamos em guerra

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"Eu não sei como é na guerra, mas acho que não deve dar tempo de salvar nada também." - Foto: Isis Medeiros
Pessoas que enfrentam a Vale começaram a receber ameaças, ataques e intimidações

Quando pensamos em guerra, logo pensamos em Ucrânia, Iraque, Irã e Palestina. Pensamos nas guerras que nos são ensinadas como tal. Mas, afinal de contas, o que é preciso para que algo seja classificado como guerra?

Na minha cidade, nós tivemos 272 pessoas soterradas por uma onda de rejeitos da mineradora Vale. Não tinha exército inimigo. O inimigo era a Vale, que estava ali lucrando com o nosso território há décadas, sem trazer nada em troca. Mas tínhamos exército de voluntários, agricultores e bombeiros, que, sem equipamento adequado, adentraram a lama de rejeitos para salvar os que podiam ser salvos, e para resgatar os corpos daqueles que já haviam partido. Na guerra deve ser assim também. O absurdo sendo tratado como normal.

Não teve tiroteio, bomba nem metralhadora. Geralmente, as detonações acontecem diariamente durante o processo de mineração, a gente escuta os estrondos. O que teve foram corpos espalhados por todo lado. Corpos misturados com as plantações dos agricultores da região. Corpos que foram triturados e que até hoje buscamos seus pedaços, incansavelmente. Também havia corpos em sacolas pretas sobrevoando a nossa cidade por meio de helicópteros.

Não teve sirene avisando que a barragem iria romper. Aliás, não teve sirene no dia em que a barragem rompeu. Depois do rompimento, a sirene começou a soar de vez em quando, pra nos lembrar daqueles que poderiam ter sido salvos se a sirene tivesse tocado. Acho que era a Vale tentando provar pros acionistas que o sistema de segurança funcionava e que eles tinham responsabilidade socioambiental.

Em Brumadinho, há crianças fazendo uso de medicamento antidepressivo. 

Depois das mortes no rompimento da barragem, vieram as outras mortes. Morte de trabalhador que operava em obra de reparação do rompimento da barragem. Mortes por suicídios, sem contar as tentativas. A psicologia explica: faz parte do estresse pós-traumático, sintoma muito similar ao de vítimas de guerra.

Teve família com retroescavadeira emprestada procurando o corpo de seu próprio ente na lama, sem qualquer apoio do Estado. Teve criança de 10 anos, que perdeu o tio no rompimento da barragem, tentando suicídio. Teve famílias fazendo operações de buscas de maneira independente, adentrando a mata sem suporte nenhum, gritando o nome de seu ente.

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Em Brumadinho, há crianças fazendo uso de medicamento antidepressivo. Lideranças pedindo ajuda para comprar antidepressivo em Belo Horizonte, porque em Brumadinho acaba e, às vezes, não se acha nem para comprar. Teve também funerárias entregando cartõezinhos na porta de velórios. Advogados oportunistas chegando às comunidades e prometendo o mundo.

Nos primeiros dias da tragédia, escutamos o alto-falante tocando sete ou nove vezes no mesmo dia, anunciando a morte dos que tinham sido identificados. Temos a lista dos que não foram encontrados, que são considerados desaparecidos. Mas, na guerra é assim, as pessoas morrem mesmo, elas desaparecem. Aqui também foi assim. A Vale não perdoou nem os próprios trabalhadores que tinham orgulho de trabalhar na empresa. Ela os triturou. Caixão fechado para todos e para todas. Na guerra é assim.

 Eu não sei como é na guerra, mas acho que não deve dar tempo de salvar nada também.

Quando o exército de Israel veio a Brumadinho, eu tive a oportunidade de contribuir na equipe de tradução. Eu vi o meu celular cheio de ligações e mensagens de pessoas queridas perguntando se o exército tinha encontrado a sua mãe, o seu filho ou a sua tia. Eu vi o exército de Israel voltar do primeiro dia de buscas sem absolutamente nenhum retorno oficial. Quando eu perguntei o que eles encontraram, me disseram que marcaram os lugares com probabilidade de encontrar corpos com X, para retornar no dia seguinte. Na guerra tudo é incerto, a gente não pode esperar demais.

Dezenas de famílias tiveram que correr da lama e assistiram suas casas serem destruídas pela avalanche de rejeitos de minério. Muitas não tiveram tempo de salvar nenhuma foto. Eu não sei como é na guerra, mas acho que não deve dar tempo de salvar nada também.

Resultados de exames de sangue de um estudo realizado pela Fiocruz e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostram a contaminação de metais pesados da população da minha cidade. Nenhum órgão nunca apresentou um plano de ação, um tratamento médico sequer. Estamos sendo contaminados a conta gotas, pelo ar, pela água e pelo solo. Mas tudo bem, estamos em guerra. Não podemos exigir muito.

Pessoas que começaram a fazer o enfrentamento à Vale e às violações por parte do Estado no território começaram a receber ameaças, ataques e intimidações. Temos refugiados políticos espalhados em alguns cantos, como na guerra. Querem que nos acostumemos com essa realidade. Afinal de contas, guerra produz refugiados.

Desde o rompimento da barragem, temos problemas com o abastecimento de água. É que parte da nossa água foi contaminada. Então, algumas comunidades hoje dependem de caminhão pipa, que a empresa criminosa entregue garrafa de água nas casas ou, então, da caridade da igreja. Mas tudo bem, na guerra tem instabilidade de recursos naturais mesmo.

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Na Europa, tem o medo do desabastecimento energético, sobretudo em razão do gás que vem da Rússia. Imagina só, que absurdo as pessoas ficarem sem gás, sem poder se aquecer! Na minha cidade é o desabastecimento hídrico. Afinal, boa parte da nossa água está contaminada por metais pesados. Imagina só ficar sem água, que absurdo! Mas é a guerra.

O custo de vida saltou exponencialmente. Brumadinho hoje é um dos lugares mais caros de se viver. Impossível pagar aluguel. Isso sem contar os preços dos alimentos e do custo de vida em geral. Mas na guerra é assim mesmo, tem uma instabilidade da demanda e da oferta que desequilibra o mercado.

Na minha cidade tem também o aumento da violência sexual e de gênero. Isso me lembra soldados de guerra que entram no território inimigo e também invadem e violentam corpos de mulheres inocentes.

A cidade pequena foi superlotada com homens trabalhadores de várias partes do Brasil, que vieram trabalhar nas obras de reparação do rompimento da barragem. Ou seja, vieram ser explorados por empresas terceirizadas que pagam pouco e que mal dá para eles comerem. São trabalhadores que deixaram suas casas e famílias e que hoje são explorados e violentados pelo capital, sofrendo preconceito de classe e, muitas vezes, sendo tratados como lixo pelos próprios moradores de Brumadinho. Na guerra é assim. Não dá pra exigir direito trabalhista, respeito e qualidade de vida.


Crédito / Isis Medeiros

Mas não acaba por aí, dizem que até na guerra tem aqueles que lucram e ficam ainda mais ricos. Isso mesmo. Em cima de tanto sofrimento, tem gente construindo lucros bilionários. No balanço anual de 2021, por exemplo, a Vale teve lucro líquido recorde de R$ 121,2 bilhões. A empresa comete o crime e segue lucrando mais do que nunca. Quem explica isso?

Para sair desse buraco, a gente precisa de, no mínimo, justiça

O governador Romeu Zema, do Estado de Minas Gerais, passou a mão no dinheiro proveniente do maior crime humanitário da história do Brasil e fez palanque eleitoral em todos os municípios de Minas Gerais. Com a desculpa de que “o Estado inteiro foi atingido”, Zema excluiu os atingidos das mesas de negociação do acordo e desenhou um acordo bilionário que favoreceu majoritariamente os cofres públicos. Mas temos que relevar. Guerra é guerra.

Na guerra deve ser assim também: organismos e instituições do Estado, que a gente esperava que fossem nos defender, mas que, no final, entregam a batalha e se vendem porque se consideram impotentes diante do império do inimigo. Deixam o seu povo morrer.

Cheira a guerra, parece guerra e tem gosto de guerra. Para sair desse buraco, a gente precisa de, no mínimo, justiça. Justiça criminal, os responsáveis precisam pagar judicialmente. Justiça social, os atingidos precisam ser reparados integralmente. Justiça ambiental, o meio ambiente precisa ser minimamente recuperado. E justiça histórica, o crime precisa ser narrado com honestidade e verdade.

Só existirá paz quando existir justiça.

Marina Paula Oliveira é atingida pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas, participa de movimentos populares, faz parte da Articulação Brasileira para a Economia de Francisco e Clara (ABEFC) e do Grupo de Reflexão e Trabalho da PUC-Minas para Economia de Francisco e Clara.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida