No dia 22 de setembro, às 20h, a Associação Campo das Vertentes lançará o livro “Estado de Arte – João das Neves e Minas Gerais”. A publicação, que aborda os 25 anos da obra do diretor, dramaturgo e ator João das Neves em Minas Gerais, foi organizado pela jornalista Ludmila Ribeiro, a cantora Titane, companheira de vida e arte de João das Neves, e o jornalista João Paulo Cunha, pensador mineiro falecido na última semana.
Além do lançamento, a programação envolve outras duas atividades gratuitas, às 20h, transmitidas pelo YouTube: uma apresentação comentada do espetáculo “Lazarillo de Tormes”, último dirigido por João das Neves, na sexta-feira (23), e o musical “Lili canta o mundo”, no sábado (24).
Em entrevista ao Brasil de Fato, Titane fala sobre o livro, a obra de João das Neves, a amizade com João Paulo Cunha e o pensamento humanista e libertador que os tornou amigos e faz de suas ideias na comunicação e na arte verdadeiras luzes para atravessar estes tempos de obscurantismo, golpes e ataques à cultura popular e ao povo brasileiro.
Conte-nos um pouco sobre a iniciativa de “Estado de Arte – João das Neves e Minas Gerais”. Como surgiu a ideia? Do que trata o livro?
A ideia é antiga, uma necessidade constante nossa de levantar informações sobre a produção artística aqui em Minas, para além daquelas que retemos no coração. O livro é para contar um pouco a riqueza do que foi produzido pelo João em Minas Gerais, por mais de 20 anos.
Era para ter sido escrito por ele, com sua reflexão sobre a própria obra e a relação com as muitas culturas. João era um diretor que se deslocava muito, conhecia muitas realidades e pessoas e se comprometia com elas.
Ele passeou pelo universo indígena, pelas figuras de matriz africana, o povo do subúrbio carioca, o interior de Minas. E ele não trazia só os temas, mas também os atores desses lugares. Então, ele deu uma grande contribuição ao teatro latino-americano, reconstruindo o teatro a partir das estéticas dessas muitas culturas brasileiras.
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Porém, não houve tempo, o João faleceu. Então, nós redimensionamos o livro e ele agora organiza informações sobre os espetáculos. Traz também textos assinados por artistas que colaboraram com ele e estudiosos.
O livro é organizado pela Ludmila Ribeiro, por mim e convidamos o João Paulo Cunha para participar conosco. Isso deu muito certo, pois perdemos o João das Neves, mas passamos a ter o João Paulo Cunha, com toda a sua sensibilidade, inteligência brilhante, capacidade de compreensão do outro. Esse livro deve muito à presença dele.
É interessante essa aproximação. O João Paulo admirava demais o João das Neves. Me lembro dele recomendando vivamente o espetáculo “Lazarillo de Tormes”, em 2017.
Era uma admiração mútua e bem declarada. O João das Neves era um leitor voraz do João Paulo, esperava os textos dele, lia no jornal, ouvia na rádio Inconfidência. Foi o João das Neves quem fez a apresentação do livro do João Paulo “Penso logo duvido”.
São dois grandes intelectuais, que se encontram nos universos da arte e da grande filosofia brasileira, que é escrita pelos grandes compositores da música popular, as figuras do teatro e também por jornalistas como o João Paulo Cunha.
Eles se encontravam muito na profundidade da reflexão, na curiosidade, no desejo de conhecer o ser humano, as sociedades, as diferentes culturas. E uma ética muito parecida, das pessoas que acreditam que o ser humano nasceu para viver coletivamente, que aposta na solidariedade, na luta cotidiana pela construção de sociedades mais justas. Eles tinham essa crença no ser humano e na sua capacidade de solucionar conflitos, criar sociedades harmoniosas, em que os indivíduos têm valor, mas não impera o individualismo.
O que eles têm a nos dizer sobre a luta contra esse cenário de golpe e de negação da vida e da cultura?
Foram dois teimosos, persistentes, mas de uma teimosia de quem acredita que coisas boas podem acontecer. Mas nenhum dos dois romantizava, havia uma objetividade muito grande, de compreender a materialidade da vida. O sonho é possível, mas não nasce do nada, é uma decorrência das nossas ações. Eles não só refletiam, mas atuavam o tempo todo.
O João das Neves faleceu com 84 anos, viveu muita coisa, muitos golpes, perdeu muitos companheiros. Mesmo assim, conseguia conviver com as gerações posteriores às dele com frescor. Todo mundo gostava de ouvi-lo e ele também gostava de nos ouvir, sempre tinha um interesse permanente pelas outras gerações.
O João Paulo Cunha faleceu muito jovem. Eu acho que ele furou a fila, estava muito jovem. Eu tenho muita dificuldade de me conformar. Recentemente, nos encontramos no momento que detonou a criação da Escola de Artes João das Neves, do MST. O João Paulo fazia muita diferença pra nos ajudar a entender o contexto histórico, cultural, artístico em que a gente estava. Ele vinha com muitas informações, todas as reflexões partiam de um levantamento minucioso, de escritores que haviam pensado sobre aquilo.
Então, é um jeito maravilhoso dos dois, uma vida intensa, aberta ao mundo em permanente construção, onde todos devem colaborar. Eles estavam juntos, em fricção com os grandes temas contemporâneos.
A última peça do João das Neves, por exemplo, é toda feita no contexto da luta contra o racismo, com atores negros, com as discussões da comunidade LGBTQIA+, da formação das novas famílias, isso que as pessoas tratam da maneira mais limitada, como questões de comportamento, puramente identitárias.
As nossas ações políticas hoje não podem desconsiderar essas questões. O trabalhador não quer resolver só o problema da barriga.
O João das Neves nasceu organizado no Partidão, passou pelo CPC da UNE e pelo Teatro Opinião, um dos principais centros de resistência ao golpe de 64. Depois, entre outras coisas, foi para o Acre a convite dos seringueiros, no momento da criação da União dos Povos da Floresta.
Veio para Minas num momento importante, quando estávamos entendendo, pela primeira vez, o que é política pública para cultura, com a Berenice Menegale [pianista, professora e secretária de Cultura de BH na gestão de Patrus Ananias], com a Associação Cultural Ecológica Lagoa do Nado conquistando a área, que não era pública.
O João das Neves tinha o rigor artístico necessário para fazer com que as vivências ali fossem eficientes e, ao mesmo tempo, ajudassem a compreender a importância do movimento social e ambiental. Era o único movimento ambiental que a gente conhecia. Ele, como artista, ajudou a costurar as expectativas e interesses de uma política pública com juventude. Foi tudo tão intenso, que o espetáculo que o João montou naquele momento tinha todo o elenco do Planalto.
Esse espetáculo é considerado por muitos um marco inaugural de uma fase do teatro brasileiro, em que o teatro deixa a caixa preta do espaço convencional e passa a invadir espaços variados de convívio: praças, ruas, pedreiras, viadutos, parques. Na verdade, ele dizia que estava devolvendo o teatro a seus espaços de origem. O Primeiras Histórias, do João, está no início disso. Ao mesmo tempo, é um marco para a política pública, pois foi tão intensa a experiência, que criou as condições para que a Berenice Menegale criasse o primeiro centro regional de cultura de Belo Horizonte.
E a história prossegue, ele acabou se integrando ao Reinado do Rosário. E, então, nós vivemos um momento delicado de encontro da cultura congadeira com outras instâncias da sociedade e outros segmentos. Começa a haver um diálogo entre a arte e diversas matrizes ancestrais. É Maurício Tizumba tocando tambor mineiro, eu tocando tambor mineiro, trazendo o patrimônio musical do reinado para a música popular. Isso é um fenômeno recente da virada do século para cá. O Reinado do Rosário foi generoso conosco.
E não só esses elementos estéticos vêm para a arte, como vivemos processos de formação, troca e criação de espetáculos com comunidades do reinado, tendo o João das Neves como diretor.
A Associação Campo das Vertentes preparou uma série de atividades para lançamento do livro na próxima semana. Como vai ser?
O livro é uma realização da Associação, que é um coletivo de artistas que eu, João, Irene Ziviane, num momento em que trabalhávamos com o Sérgio Pererê, criamos. Teve muitas consequências. Muitos artistas se dizem formados pela Associação. São processos em que colocamos jovens convivendo com artistas experientes, acreditando que isso toca o bonde de todo mundo pra frente, em torno da montagem de espetáculos.
A gente mantém o coletivo, que, neste momento, se dedica à publicação do livro. Estamos fazendo mostras. Agora, em setembro, teremos o “Lili canta o mundo”, com canções do espetáculo da Irene Bertachine, em diálogo com as crianças. Vai ser exibido pelo YouTube.
As outras duas atividades são dedicadas ao João. A primeira é uma apresentação comentada do espetáculo “Lazarillo de Tormes”. Vai haver um vídeo e vamos comentar. É muito importante, pois foi o espetáculo em que ele decidiu voltar ao palco. Ele era ator, mas depois foi assumindo a função de diretor e só aos 84 anos voltou ao palco. E voltou com uma vitalidade impressionante, com uma capacidade de corpo e de voz invejável.
O João Paulo Cunha escreveu muito bonito sobre esse espetáculo, a reportagem no livro é do João Paulo. É uma novela picaresca, medieval, espanhola, que trata de um personagem que está sempre submetido a situações humilhantes pelos patrões, mas também é muito astuto. Ele tem muita correspondência com nosso Macunaíma, como Pedro Malazartes. Depois, ele pula subitamente para os dias de hoje e traz os lazarillos de hoje, aqueles que se rebelam, numa ponte imediata com o universo das grandes cidades, o tráfico. É muito impactante.
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Na última cena, o personagem pega em metralhadora. Na verdade, o João escreveu três finais e encenou um deles. Mas a gente não tem a escrita das outras duas possibilidades. Esses três finais não são uma divagação, mas a reflexão que o João fazia daquele momento histórico, com o impeachment da Dilma. Tanto que o segundo ato abre com o vídeo de Bolsonaro dando o voto em homenagem ao Coronel Ulstra. Então, ali, ele pensava como vai reagir o povo brasileiro e como as esquerdas devem reagir. Então, o final aponta para uma possível realidade violenta, que não está clara. Existe uma violência em curso e a gente não sabe quem vai se apropriar dela.
Mas não é um jeito bom de fazer teatro? Ele era capaz de fazer isso, criar algo e ceder para outros montarem. Era uma obra muito viva ao momento histórico e às pequenas conjunturas. Como no CPC da UNE, onde acontecia um episódio de manhã e, de tarde, eles estavam com cenas teatrais na rua, com grande margem para o improviso.
Nestes dias, em que muita coisa pode ser decidida no Brasil, qual a contribuição que nós, da comunicação e da cultura, temos a dar para a luta política no Brasil?
Em primeiro lugar, nós estamos sofrendo com essa sociedade. Tem gente sem emprego nas artes, tem gente que caiu em depressão. Nós estamos sentindo essas dificuldades. Então, temos que encontrar dentro de nós os motivos para viver. Isso não é um mero detalhe. A gente, quando é militante, acha que tem que sempre estar pronto pra guerra, mas também temos que estar prontos pra ser feliz. A gente tem que estar vivo, defender o nosso prazer, a nossa alegria, a nossa capacidade de viver coisas boas. Aí, a gente consegue fazer esse discurso com facilidade para todo lado, como cidadão, como artista, nos posicionando a todo momento.
Eu gostaria que declarássemos o nosso voto, mas com consistência. Não gosto que a gente apele para linguagens fáceis de redes sociais, do marketing, para recadinhos rápidos. Queremos que Lula vença por algum motivo. Eu também penso em construir em ambientes políticos de discussão desde a eleição. O buraco é mais embaixo: estamos lutando contra uma direita organizada e mobilizadora. E só vamos conter o avanço dessa direita com consciência política.
Eu acredito numa mudança histórica de parâmetros culturais, em que as pessoas vão desejar ser protagonistas de suas próprias vidas da mesma maneira que precisam viver. Isso está em curso.
Acho que devemos defender a eleição do Lula em primeiro turno, mas sempre respaldados a comportamentos que levem à reflexão política, e não só o “vou votar nele”. Existem exemplos de apoios que estão sendo declarados em linguagem publicitária e violenta.
Para além das eleições, com o Lula ganhando, vamos ter que ser astutos e continuar afirmando coisas básicas, como a necessidade da organização popular. E ela não está na boca de nenhum candidato. Então, vamos ter que nos empenhar para apostar nos movimentos.
Edição: Elis Almeida