Minas Gerais

ELEIÇÕES 2022

Artigo | Justiça na mira

A aposta de Bolsonaro era a descredibilização das eleições e do Judiciário. Mas o tiro saiu, literalmente, pela culatra

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
Marcos Corrêa - PR

Todos sabiam que as disputas presidenciais se agravariam no segundo turno e tinham tudo para virar reprise das eleições de 2018, com a máquina de disparos em massa de fake news, tentando reverter a desvantagem eleitoral de Bolsonaro com a aposta na desinformação. Mas o Brasil de 2022 não é o mesmo de 2018.

Primeiro, porque Lula está no páreo da disputa, com vantagem em número de intenções de voto sobre Bolsonaro. A narrativa de que a Lava Jato era uma operação séria e isenta contra a corrupção virou piada de mau gosto, após os vazamentos da “Vaza Jato”, em 2019. E também após a declaração da suspeição de Moro pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, e após a recomendação do Comitê de Direitos Humanos da ONU, em 2022, apontando violações sistemáticas aos direitos de Lula e confirmando a parcialidade de Moro.

Em 2018, havia um Brasil e um Judiciário impotente, nas mãos da máquina da desinformação, rendidos à manipulação do direito pela política. Lula, o favorito e único oponente possível de derrotar Bolsonaro nas urnas, foi preso sincronicamente em abril de 2018, dado como prêmio pelo ex-juiz Moro, posteriormente convertido em ministro da Justiça e, hoje, senador eleito e aliado de Bolsonaro.

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A confirmação recente do uso estratégico do direito para os fins políticos de tirar Lula das disputas nas eleições de 2018 foi a reaproximação de Moro e Bolsonaro, no debate presidencial da Band, em 2022, após Moro deixar o governo em abril de 2020, acusando Bolsonaro de interferência na Polícia Federal para blindagem da família e de aliados corruptos.

O segundo motivo para afirmar que o cenário não é o mesmo daquele de 2018 é que, em 2022, houve um aprimoramento das instituições no trato com as fake news, tendo como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Alexandre de Moraes, que prometeu tratar com a devida seriedade os ataques contra a democracia. O mesmo ministro do STF já conhecido pela atuação na condução do chamado inquérito das fake news.

Alexandre de Moraes já estava na mira bolsonarista há tempos e foi atacado sistematicamente, pois, como a Presidência do TSE é definida por revezamento, já era sabido que o próximo seria ele.

O paradoxo da censura

Diante do que se desenhava no TSE e da desvantagem de Bolsonaro na disputa do segundo turno das eleições, a aposta foi mirar no órgão incumbido de combater as fake news, já que elas estavam no coração da campanha bolsonarista.

Foi assim que a campanha de Bolsonaro duplicou as apostas na reta final das eleições, usando a máquina propagandista para descredibilizar o TSE e gerando a falsa percepção nas pessoas de que estaria havendo uma “censura" em favor de Lula.

Primeiro, a Jovem Pan inventou ter sido censurada, por meio de diretiva expedida pelo seu próprio corpo de advogados. O TSE apenas concedeu, em três processos, os devidos e previstos direitos de resposta, diante da divulgação de conteúdos sabidamente inverídicos, acatando o pedido judicial da coligação Brasil da Esperança contra o grupo Rádio Panamericana SA, aplicando os dispositivos normativos do Código Eleitoral que proíbem a conduta de espalhar notícias fraudulentas e mentirosas.

A mentira escalou de tal maneira que um homem na gravação da rádio foi tratado como funcionário responsável pela suposta "censura" da Jovem Pan, órgão que possui concessão pública e deveria garantir tratamento isonômico aos candidatos. Em paralelo, o pastor bolsonarista André Valadão e o Conselho Federal de Medicina inventaram supostas decisões da justiça eleitoral contra eles.

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Todos esses fatos tiveram que ser desmentidos pelo Tribunal Superior Eleitoral, que criou, nestas eleições, um portal próprio para apuração das fake news, diante de tal ação orquestrada no sentido de descredibilizar, por meio de fake news, o órgão responsável por coibir as próprias fake news.

Brincando com a ideia do paradoxo da tolerância, de Karl Popper, no sentido de que a tolerância ilimitada leva ao próprio desaparecimento da tolerância, a pergunta que deve ser feita é: até que ponto se deve tolerar a suposta “liberdade de expressão”, quando calcada em difusão fraudulenta de fake news?

A liberdade de expressão não deve tolerar a liberdade de expressão ilimitada, se essa suposta "liberdade de expressão" infringe, ofende ou incentiva a violência e os ataques às liberdades individuais. Em outras palavras: combater a mentira e garantir o respeito à lei e à Constituição não é censura, pois, em um regime em que é tudo tolerado, a própria liberdade de expressão se dissipa.

Resolução do TSE e a aposta do bolsonarismo

O TSE, por unanimidade, aprovou a resolução 23.714/2022, endurecendo ainda mais o combate às fake news e à desinformação nas redes sociais, na semana que antecede o segundo turno das eleições.

A resolução era um prato cheio para o bolsonarismo, que por meio de distorções sistemáticas e pontuais do próprio texto da resolução, usou-a como muleta para sustentar a falsa narrativa de "censura" por parte do poder judiciário.

A situação se alastrou de tal maneira que o jornal estadunidense The New York Times, em lamentável editorial do dia 21 de outubro de 2022, encampou a narrativa bolsonarista de que a resolução aprovada pelo TSE permitiria a Alexandre de Moraes decidir “o que pode ser dito online no Brasil”.

Trata-se de uma distorção vergonhosa do texto da resolução, que confere à Suprema Corte o poder de agir de ofício apenas em casos de conteúdos idênticos sobre os quais a Corte já tenha se pronunciado, após o devido processo legal envolvendo as partes interessadas, em igualdade de condições.

O artigo 3º da resolução garante que o Tribunal estenda a exclusão do conteúdo banido a outros endereços eletrônicos que o tenham reproduzido, pois as cópias de conteúdo banido permaneciam circulando nas redes sociais, influenciando eleitores de modo criminoso.

Após a publicação da resolução e vendo que a mesma colocaria em xeque as estratégias eleitorais de Bolsonaro, foi a vez do Procurador Geral de República, Augusto Aras, entrar em ação, com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF, pedindo, cautelarmente, a suspensão da norma do TSE.

A ADI 7261 foi sorteada para a relatoria de Fachin, que, em 22 de outubro, indeferiu o pedido cautelar. Ele entendeu, corretamente, que a resolução conforma a atuação do legítimo poder de polícia incidente sobre a propaganda eleitoral e que “uma eleição com influência abusiva do poder econômico não é normal nem legítima, vale dizer, não é livre nem democrática”.

Diante dessa situação, Bolsonaro resolveu triplicar a aposta, que já era alta, aprofundando, ainda mais, o conflito com o Judiciário.

Quando o preço sai caro demais

Roberto Jefferson protagonizou os novos capítulos, como candidato a mártir e oferecendo seu corpo para a reeleição de Bolsonaro. Preso desde agosto de 2021 e famoso por atacar ministros do STF, era o personagem perfeito para a demanda que tinha como foco descredibilizar o Supremo, construindo a narrativa de um autoritarismo extremo.

Jefferson, diferentemente do afirmado por Bolsonaro, não figurava em um “inquérito sem o MP”, mas era réu em ação penal da Procuradoria Geral da República, em decorrência de crimes contra a honra e homofobia, tendo sido deferida a substituição da prisão preventiva por domiciliar, mediante o cumprimento de algumas condições, como proibição de visitas e de contato em redes sociais, medidas essas reiteradamente descumpridas.

Foi nesse contexto de seguidos descumprimentos que Roberto Jefferson publicou um vídeo, com ofensas gravíssimas e misóginas contra a ministra Carmen Lúcia, acusando-a de censura no caso da Jovem Pan.

Diante do cometimento de novos crimes e dos reiterados descumprimentos das medidas, foi determinada a revogação das benesses e a volta de Roberto Jefferson para a prisão.

A ação foi calculada para levar o conflito com o Supremo para outro patamar. O possível objetivo de Roberto Jefferson era ser atingido na operação policial, convertendo-se em mártir e, assim, reverter votos para Bolsonaro e gerar crise institucional.

Jefferson jogou três granadas e disparou vários tiros de fuzis contra os policiais federais, ferindo dois agentes. Frustrado em seu objetivo e após o envio por Bolsonaro do ministro da justiça para protegê-lo, em rendição mediada pelo pseudo-padre Kelmon, não restou outra alternativa a Jefferson a não ser se entregar. Ao Bolsonaro, restou negar as inegáveis ligações com seu velho aliado, Roberto Jefferson, agora indicado por quatro tentativas de homicídios. Ambos reféns na queda de braços que eles mesmos armaram.

O último suspiro é a alegação da campanha de Bolsonaro de que existem “documentos sérios” que, em tese, comprovam fraude em propaganda de rádio em favor de Lula, com 154 mil inserções a menos para Bolsonaro. O ministro Alexandre de Moraes, em decisão, ordenou a comprovação das alegações por aditamento à petição inicial, sob pena de indeferimento da ação e de apuração de crime eleitoral. A campanha de Bolsonaro aditou o processo, juntando relatórios gerados pela empresa Audiency Brasil Tecnologia, segundo eles, aptos a gerar “ilegitimidade do pleito”. Contudo, tal monitoramento em software é feito pela webcast, no qual não é obrigatória a veiculação das inserções dos candidatos, gerando dados incompletos e imprecisos. Independentemente do resultado processual, Bolsonaro usa a ação para alcançar o resultado político, de instabilidade institucional e, mais uma vez, mostra que a mira é no Judiciário.

Se o objetivo era corroer a democracia pelo ataque à democracia, sob o pretexto irreal de exercer a “liberdade”, a metáfora das miras erradas nunca foi tão certeira.

Dissolvida a alegada “liberdade de expressão” em “liberdade de munição”, o tiro da instabilidade institucional sai, literalmente, pela culatra.

Ana Paula Lemes de Souza é doutoranda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da UFRJ. Pesquisadora, ensaísta, professora, advogada e colunista. Nascida e moradora da região do Circuito das Águas do Sul de Minas Gerais, Brasil. Escritora, poeta e ativista ambiental.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa