124 milhões de brasileiros e brasileiras compareceram às urnas neste fim de semana para eleger Lula presidente e acabar com a barbárie que corrói nosso país. Para grande parte dessas pessoas, o próximo voto que darão será o do primeiro turno das eleições municipais de 2024.
Passarão os próximos dois anos sem a oportunidade de decidir os rumos das instituições que organizam suas vidas. Não me refiro aqui apenas às instituições do Estado, mas às instituições que organizam a nossa vida diária: o trabalho, a cultura, o lazer, a religião e a política para além do Estado.
As democracias representativas liberais passam por um momento de sério déficit democrático. Como coloca o cientista político David Runciman - pouco suspeito de qualquer inclinação socialista - seria mais correto chamar essa forma de governo de representativismo democrático do que democracia representativa: a participação dos cidadãos na vida pública se resume a eleger representantes por meio de um único voto de tempos em tempos.
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Fora isso, não há mais democracia. A “crise de representatividade” das democracias liberais não pode ser entendida apenas como uma desconexão entre os corredores do poder e a vida cotidiana dos cidadãos, abrindo espaços para toda sorte de aventureiros.
Falta de cultura democrática
Essa crise ocorre também por falta de cultura democrática. Deliberar, negociar, eleger e ser eleito simplesmente não fazem parte da vida da maior parte das pessoas. Nossa vida é pautada por relações hierárquicas ou de consumo. Não escolhemos nossos patrões, pastores, técnicos de futebol, regentes de blocos de carnaval.
Apenas 16,2 milhões de pessoas estão filiadas a partidos no Brasil
As principais instituições democráticas da sociedade estão em declínio, seja em número, seja em qualidade democrática. Segundo dados do TSE de 2021, apenas 16,2 milhões de pessoas estavam filiadas a partidos políticos no Brasil. Pior, poucos partidos têm processos internos democráticos. Com raras exceções, são partidos criados e tocados de cima para baixo por caciques políticos.
Também com raras exceções, os partidos políticos brasileiros são máquinas eleitorais e de governo. Não são entidades que organizam e canalizam a participação dos cidadãos na política no sentido amplo, entendida como a produção cotidiana da vida comum.
O sindicalismo, o outro grande bastião da cultura democrática das sociedades capitalistas, também sofre. Nos países centrais, as taxas de sindicalização têm despencado nas últimas quatro décadas.
No Brasil, a reforma trabalhista acelerou um processo de dessindicalização: entre 2017 e 2019, data do último levantamento, o número de trabalhadores e trabalhadoras sindicalizados caiu de 13 para 10,5 milhões. A precarização e a desregulamentação do trabalho, combinadas com o aumento da pobreza, desfavorecem a organização da classe trabalhadora nos sindicatos.
A falência da cultura democrática está intimamente ligada ao declínio das forças socialistas. Na sua definição mais simples, o socialismo é a introdução da democracia no domínio econômico. Os movimentos da classe trabalhadora organizada foram, desde o século XIX, os grandes promotores da participação democrática.
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A classe trabalhadora organizada foi a força de sustentação da ampliação do sufrágio na política, mas sua potência democrática sempre foi além. Sindicatos e movimentos de base introduzem e consolidam a participação democrática em todas as esferas da vida dos trabalhadores e trabalhadoras: no clube do sindicato, na associação de bairro e, principalmente, na esfera econômica.
Deliberar e votar três vezes ao ano
Por isso, o projeto de reavivar a democracia brasileira deve passar necessariamente por fortalecer a nossa cultura democrática.
Enquanto o presidente Lula se ocupa dos projetos que voltarão a colocar comida no prato de todos e todas três vezes ao dia, devemos nos preocupar em garantir que cada brasileiro e brasileira delibere e vote pelo menos três vezes ao ano. Apenas com esse processo de convivência democrática constante - e com a vivência da igualdade do voto que vem com ele - poderemos afastar as forças antidemocráticas que ainda dominam o nosso país.
É essa convivência democrática que será fundamental na “desbolsonarização” da sociedade brasileira: ela impede que se proliferem os discursos de ódio baseados na desigualdade e na crença de superioridade. É a convivência democrática que impede que as pessoas sejam dominadas por sistemas informacionais fechados e viciados.
O retorno dos conselhos setoriais, prometido pelo presidente Lula, será um grande avanço nesse sentido. Os conselhos representam a voz da sociedade civil durante o governo, não apenas na eleição do governo. Fortalecem os movimentos sociais ao dar a eles um espaço privilegiado de fala.
Movimentos com voz se transformam em grandes espaços para a mobilização e organização da cidadania. Nós, dos movimentos sociais, sindicatos e partidos, temos que aproveitar a janela histórica que se abrirá para trazer novos cidadãos e cidadãs para a vida democrática cotidiana. Para além das pautas pelas quais lutamos, aumentar a convivência democrática cotidiana será um grande avanço para o país.
Que tal nos organizarmos?
O momento pós-eleição é a melhor hora de promover a vivência democrática. As pessoas estão mobilizadas e passaram os últimos meses dedicando seu tempo a convencer o próximo e se organizar coletivamente. Isso é especialmente verdade em uma eleição dominada pela pauta da preservação da própria democracia.
Portanto, deixo um convite: você, que ainda não participa de movimentos sociais, partidos, ou sindicatos, procure um. Pergunte em uma rede social como fazer parte. Não deixe sua participação política terminar com a apuração dos votos.
E você, que já está mobilizado e organizado, convide um amigo ou amiga. Converse com aquela pessoa que deu sangue na campanha de Lula ou das deputadas e deputados de esquerda. Mostre como isso que ela já fez durante um mês pode ser parte de uma nova vida.
Assim, seremos mais fortes. E vamos precisar ser mais fortes.
Pedro Faria é economista e historiador. É pesquisador de pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais.
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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida